"Tem certeza que vai fazer isso?", o contato 'Maninha' perguntou por mensagem de celular.
"É o certo. Você deveria fazer o mesmo", Isabela respondeu.
"Tá doida? Sexo só depois do casamento? Consigo não kkk não sei de onde tirou essa viagem."
"... da Bíblia?", respondeu Isabela.
"Se diz na bíblia que se uma mulher cometer adultério, deve ser apedrejada até a morte. Concorda com isso também?"
"Não. Em João 8, Jesus Cristo salvou do apedrejamento uma mulher que cometera adultério. 'Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela', ele disse."
"A Bíblia é cheia de contradições, Isa."
"Não são contradições, mas sim complementações. Da mesma forma que você não pode saber a moral de uma história antes de ler até o final, não se deve pegar um parágrafo isolado da Bíblia e sair por aí falando que é isso que o livro quer transmitir para os leitores."
"Uma parte diz pra apedrejar; outra, pra mostrar misericórdia. É uma contradição para mim."
"Tá. Pense o que quiser."
Não trocaram mensagens por alguns minutos. Sua irmã era cética quando o assunto era religião, mas nem sempre fora assim. Quando eram mais jovens, liam a Bíblia Sagrada e rezavam juntas antes de dormir, além de ir à missa aos domingos. Mariana, mãe das duas, as estimulava a seguir a palavra de Deus, pois era uma católica devota. Lembrou-se de quando acordava cedo aos domingos, tomava café ao lado da família e iam juntos à igreja. Adorava os ensinamentos e as histórias da Bíblia, e quando Isabela completou 12 anos, já tinha lido o livro duas vezes, apesar de nem sempre compreender a moral do que estava escrito ali. Não entendia por que Adão e Eva apenas perceberam estar nus depois de comer o fruto proibido; não entendia por que Deus favorecia tanto Abel, mas não Cain, o que levou este a matar aquele; não entendia por que Noé amaldiçoou o filho Cam pelo simples fato deste ter visto o pai nu. Várias coisas sobre o Cristianismo a intrigavam, e quando tinha dúvidas, buscava respostas com a mãe. Aos 10 anos de idade, perguntou à Mariana por que ir à missa e por que devia se ajoelhar ao rezar. Gostava daquele, mas nem tanto deste.
"Por que cuida de suas bonecas, Isinha?", sua mãe perguntara sorrindo.
"Porque gosto delas", respondera, sem saber o que bonecas tinham a ver com igreja, missas e joelhos doloridos.
"É grata por ter suas bonecas?"
"Sim. Por que estamos falando das minhas bonecas, mamãe?"
"E se não fosse grata, cuidaria delas mesmo assim?"
"... não", dissera perplexa.
"Posso dizer então, meu amor, que cuidamos de tudo o que gostamos apenas quando somos gratos?"
"... sim", respondera confusa.
"E quando você é grata por algum presente que o papai ou a mamãe te dão, o que você fala?"
"... obrigada?", a pequena Isa redarguira, com medo de dar a resposta que sua mãe não esperava.
"Exatamente, meu bem!", um sorriso jubiloso encrespou-lhe os lábios da mãe; sorriso esse que Isabela nunca esquecera, "Por isso é importante ir à igreja, Isinha; para agradecer a Deus. Foi Ele quem nos deu tudo o que temos: nossa casa, o seu bem-estar, o de seu papai, o de sua irmãzinha e o meu"
"Mas pra que ajoelhar? Machuca... por que não podemos agradecer de pé?"
"Podemos, mas apenas pela humildade demonstra-se verdadeira gratidão. Por isso nos ajoelhamos quando vamos rezar; para mostrar a Deus que somos humildes."
O sorriso que a senhora sua mãe esboçara, tão sereno e doce quanto a suave brisa do prelúdio da manhã, adornou-lhe os pensamentos. Mariana era bela e jovem. Casara-se com o pai de Isabela aos 16 anos de idade e após um ano, já tinha concebido. Quis ver sua mãe novamente. Quis abraçá-la, beber café com ela e contá-la tudo o que acontecera nos últimos meses. Quis acompanhá-la à igreja e falar sobre a Bíblia com ela. Porém, nos últimos dois anos, Isabela passou a fazer isso sozinha. Tudo mudou após Mariana ser abandonada pelo marido. Isabela foi a única da família que continuou dedicada à religião. Não culpava a mãe ou a irmã por perderem a fé, pois ela mesma sintia-se perdida às vezes. Mas achava conforto entre as páginas da Bíblia, ou nos belos e reverberantes coros das missas matinais, ou até mesmo em um confessionário, com os joelhos prostrados sobre o genuflexório.
"Não sente peso na consciência?", enviou outra mensagem para a irmã.
"Pelo quê?"
"Por ter feito sexo antes do casamento..."
"Pq deveria me sentir assim? O corpo é meu... faço oq quiser com ele. Vc tem que largar de ser boba e parar de se culpar por ter ficado com alguém que gosta. Tb sou católica, mas não vivo na idade média", ela respondeu.
"É porque... sei lá. Não me sinto bem", respondeu Isa. Quando acabara de entrar na adolescência, pensava que a primeira vez que fizesse amor seria algo mágico, o que não se concretizou. O que sua irmã a contara sobre o sexo pouco ajudou Isabela a criar expectativas mais realistas.
"Dói? Sai muito sangue?", Isa perguntara.
"Não doeu, mas saiu um pouco de sangue", sua irmã respondera, "você vai viciar quando fizer", dissera mordendo os lábios e rindo. Isabela sentiu-se enganada. Quando fez sexo com o namorado pela primeira vez, pensou que iria desmaiar de tanta dor e que precisaria ser socorrida até o hospital para receber transfusão de sangue.
"Não se sente bem durante o sexo?", perguntou a irmã por mensagem, trazendo Isabela de volta ao aqui e agora, "Então precisa trocar de boy, não parar de transar rs"
"Não, sua besta", Isa respondeu, "é ótimo durante o sexo. O problema é que depois me sinto... mal. Como se algo pesado estivesse ao meu redor, me observando, me sufocando. É difícil explicar."
"Eu hein... isso é viagem sua. Só fazer de novo que passa... quantas vezes seguidas vcs aguentam? rs"
"Isso tá ficando pessoal demais, Bia kkk", ela respondeu.
"Olha, se vc não se sente bem, fala com ele mesmo. O importante é ser feliz", mandou vários corações após a mensagem. Isabela também respondeu com corações.
"Só toma cuidado com o jeito que vc vai falar"
"Por quê?", perguntou Isabela.
"Homens são mais inseguros do que vc pensa. Principalmente quando o assunto é sexo. Ele pode pensar que vc não gosta dele ou até mesmo que tá interessada em outra pessoa."
"É sério?"
"Sério. É nisso que dá ficar encalhada até quase os 20... sabe de nada, inocente kkk"
"Até quase os 19", Isabela a corrigiu e enviou o emoji de carinha descontente.
"19 é quase 20", Bia respondeu com o emoji fazendo careta. Continuou:
"Quando o Henrique tá afim e eu não, faço do mesmo jeito."
"Ele não percebe que você não tá afim?", Isabela perguntou.
"Não. É só gemer e sussurrar no ouvido dele que tô com tesão e pronto. Em alguns minutos, problema resolvido."
"E como entra? Não fica seco demais?"
"Lubrificante. Na falta, vai na saliva mesmo."
"Eca!"
"Vc que perguntou. Vai me falar que ele nunca deu uma cuspidinha lá embaixo?", enviou uma carinha chorando de rir.
"Que nojo! Chega desse assunto..."
Beatriz enviou várias carinhas chorando de rir. Isabela não sabia se ela falava a verdade ou se somente a provocava. Recordou-se do dia em que Beatriz começara a se relacionar com Henrique:
"É gato, viu, Isa. Gato e gente boa", dissera. Beatriz era um ano e alguns meses mais nova do que Isabela, mas sempre estivera à sua frente quando o assunto era garotos e namoro. Quando se tornaram adolescentes, prometeram uma à outra não manter segredos sobre nada. Isso incluía compartilhar quem gostavam na escola, quem queriam beijar, e se beijassem, tinham a obrigação de contar uma para a outra o ocorrido. Beatriz foi a primeira a compartilhar a experiência com Isabela quando tinha apenas 13 anos:
"É muito bom!", dissera extasiada.
"É difícil?"
"Nada, Isa. É só fechar os olhos e colocar a língua pra fora. Assim, ó", espetou-se-lhe a língua para fora da boca, vermelha e cheia de baba, "e depfois é sfó mefer", movimentou a língua de um lado para o outro enquanto baba deslizava-lhe pelos lábios.
"Para, nojenta!", sabia que ela fazia aquilo de propósito. Beatriz riu. Adorava caçoar a irmã mais velha. Isabela fingia não gostar, mas no fundo, se divertia. Quando finalmente contou para a irmã mais nova sobre seu primeiro beijo, aos 16 anos de idade, Isabela protestou:
"Você falou que era bom!"
"Mas é bom! É só chupar a língua um do outro. Não tem segredo!"
"Não é 'só isso' não!"
"O que rolou?", Beatriz perguntara aos risos.
"Quase quebrei os meus dentes da frente de tanto bater nos dele! Ele também babou na minha boca toda! Foi nojento!"
Betriz riu tanto que lágrimas rolaram-lhe rosto abaixo.
"Para de rir, sua chata!", Isabela reclamara. Tentou soar séria, mas deixou escapar um leve riso.
"Nisso que dá ficar com nerd de biblioteca, Isa", Beatriz dissera gargalhando. Ela respirou fundo, limpou as lágrimas do rosto e perguntou:
"Ele já tinha beijado antes?"
"Não sei."
"Você tem que ficar com rapazes mais velhos. Eles sabem beijar melhor porque têm mais experiência."
Mas Isabela não conhecia rapazes mais velhos. Mal tinha amigos. Na escola, às vezes, conversava com uma garota chamada Thyana, que sentava perto de Isabela durante as provas para pedir cola, e Nilce, a bibliotecária. Durante o recreio, a biblioteca era o seu lugar predileto, ao contrário de Beatriz, que ficava no pátio, conversando com os amigos. Isa gostava do silêncio, apenas quebrado pelo virar das páginas de livros ou dos ocasionais pigarros carregados de Nilce. Foi na biblioteca que conhecera Rodolfo, rapaz com quem teria seu primeiro beijo. Malgrado o rosto cheio de espinhas, Isabela o achava até bonitinho. Já o tinha visto nos corredores da escola, mas nunca tinham conversado. Um dia, durante o recreio, sentada em uma estridente cadeira, Isabela perdia-se nas cativantes páginas de Memórias Póstumas de Brás Cubas quando viu o jovem devolvendo um velho livro para Nilce. Curiosa, Isabela semicerrou os olhos na tentativa de enxergar a capa, até que o assento de madeira no qual se acomodava estalou. O barulho fez com que Rodolfo notasse a presença dela, e quando percebeu que ela fitava nele os olhos, corou. Depois desse dia, Isabela passou a vê-lo ali com mais frequência. Sempre por perto, Rodolfo a olhava de soslaio, com um livro em mãos ou examinando as prateleiras empoeiradas, mas nunca puxou assunto. Até que, alguns dias depois, ele criou coragem:
"Que livro é esse?", seu sorriso expôs o aparelho ortodôndico que visava corrigir-lhe os dentes tortos.
"Dom Casmurro", ela respondera.
"Legal", ele acenou a cabeça, "Vai cair na prova do Normandinho. Até que gostei desse livro. Geralmente não gosto dos livros de literatura que os professores passam aqui na escola, mas esse é até bom"
"Eu amei esse livro", Isabela dissera. Um breve silêncio caiu entre os dois. Então, ela perguntou:
"Que tipo de livro você gosta?"
"Senhor dos Anéis, do Tolkien", ele continuou acenando a cabeça.
"Nunca ouvi falar."
"Também tem As Crônicas de Nárnia, do Lewis, e Harry Potter, da Rowling", ele contou com os dedos, "já ouviu falar de Harry Potter, né?"
"Já", ela respondeu como se estivesse fazendo prova oral, "desse já ouvi falar! Já assisti aos filmes. Achei legal!"
"Posso te emprestar os livros se quiser", dissera, e a cabeça dele continuou se movimentando para cima e para baixo, lentamente.
"Legal. Vai que eu gosto", ela se juntou a ele e começou a acenar a cabeça também. Os dois se olharam e começaram a rir.
"Isabela, não é?", ele perguntara.
"Sim. Você é...?"
"Rodolfo. Você é do segundo C?"
"Segundo A. E você?"
"Segundo B".
Conversaram até o fim do recreio. Ao se despedirem, ele beijou-lhe bochecha.
"É um bom rapaz", dissera Nilce, olhando-a através de velhos óculos. Isabela corou. No dia seguinte, lá estava ele na biblioteca novamente com uma cópia de "Harry Potter e a Pedra Filosofal" em mãos.
"Obrigada", agradecera Isabela, sorridente. Ele ficou tão vermelho quanto um pimentão. Ela leu o livro e gostou.
"É melhor do que o filme."
"Bem melhor", ele concordara.
Rodolfo continuou emprestanto-lhe os livros até Isabela ter lido toda a saga. Após cada volume, eles conversavam sobre a história, personagens, vilões. Isa sentiu-se surpresa em descobrir que gostava de falar a respeito de algo inusitado, pelo menos para ela; nunca se imaginara discutindo sobre bruxos, magia e dragões.
"Qual é o seu personagem predileto?", ele perguntara.
"Hermione."
"Sabia que diria isso", ele sorriu.
"Por quê?"
"Você se parece muito com ela."
Isabela riu.
"Como assim?"
"Bem... err... vocês duas são inteligentes e... b-bonitas", ele gaguejou.
Ela ficou sem graça, mas gostou do elogio.
"Ele é até bonitinho", pensara.
"Ela é dentuça nos livros", Isabela dissera rindo, "A não ser que esteja falando dos filmes. Aquela atriz que a interpreta é bonita."
"I-isso."
"Isso o quê?", Isabela sorria, intrigada.
"I-isso que eu quis dizer. V-você é bonita igual ela. M-mais do que ela", ele dissera com o rosto avermelhado. Ela ficou sem saber o que falar.
"Será que ele gosta de mim?", pensara, "acho que sim. Bia saberia me dizer."
"Claro que sim, sua sonsa", Beatriz redarguiu dentro do quarto, em casa, mais tarde naquele mesmo dia, enquanto colocava o pijama para dormir, "por que você acha que ele diria isso pra você?"
"Não sei. Às vezes foi só um elogio sem malícia"
"Quantos anos você tem mesmo? É claro que ele tá afim!"
"Quantos anos você tem pra saber disso tudo sobre garotos?"
"Eu... sou fera, né?!", Beatriz sorriu e jogou os longos cabelos lisos para trás dos ombros.
Após alguns dias, Rodolfo ofereceu para acompanhá-la até a porta de casa depois das aulas. Ela aceitou, curiosa se ele teria coragem de beijá-la ao chegarem lá. Ele teve, e o fez em frente ao portão da casa dela. Isabela temeu que sua mãe ou que seu pai abrisse o portão naquele exato momento. Infelizmente, aquilo foi a única coisa boa que acontecera. Rodolfo parecia um cachorro com raiva do tanto que babava, e colidiram-lhe os dentes com os dela desengonçadamente mais do que algumas vezes. Após o beijo, havia saliva até mesmo no pescoço de Isabela, e doía-lhe a boca. Depois daquele dia, Rodolfo nunca mais apareceu na biblioteca. Chegou a vê-lo nos corredores da escola, mas sempre que percebia que ela tinha o avistado, ele desviava o olhar e seguia numa direção diferente da dela.
"Ele deve ter achado ruim também", pensara, triste. Não gostou de beijá-lo, mas apreciava a companhia dele; apreciava passar o recreio conversando com o garoto sobre magia e magos, dragões e vilões. Estimava até mesmo os estranhos e desajeitados elogios que ele fazia.
"Esquece, Isa. Se ele não conversou mais com você é porque não tá afim", dissera sua irmã.
"Nossa...", respondera decepcionada, "será que ele achou tão ruim assim?"
"Vocês dois beijaram mal. É normal pra primeira vez, esquenta não. Você é gata, mana. É brega pra caralho, mas é gata. Com um pouco de prática, vai ser quase tão top quanto eu", elas riram juntas. Beatriz era mestre em irritá-la, mas sempre sabia o que dizer para fazê-la sentir-se melhor.
"???", questionava a mensagem de Beatriz na tela de seu celular. Isabela se perdera nos próprios pensamentos por alguns minutos. Voltou a atenção para a conversa on-line:
"Ele vai pra sua casa hoje?", perguntou-lhe a irmã.
"Quem?"
"O presidente. Quem você acha?"
"Sim. Ele vem sim."
"Dá uma saideira pro coitado do seu cliente antes de fechar o bar kkkk"
"Você só sabe falar besteira?", escreveu. Depois, Isabela mudou de assunto:
"E a mamãe, como tá?"
"Uai... tá ok"
"Ainda tá com aquele rapaz?"
"Não. A fila andou kkk"
"Como assim??? E por que você não me falou, Bia?! O que aconteceu?"
"Uai, vc não dá notícias por quase um mês e a culpa de estar por fora das coisas é minha?"
"Estudando demais. Faculdade é TENSO. Em breve você vai ver como é."
"Uhum, estudando o corpo do Rafael, pelo que tô sabendo kkk"
"Fala aí e larga de suspense! O que foi?"
"Vc sabe que ele gosta de uma bebida né?"
"Sim, e daí?"
"Um dia desses eles foram pra boate e a mãe esqueceu a chave dela aqui. Quando ele a deixou em casa depois da balada, tive que abrir a porta de pijama porque já era madrugada... e ele tava bêbado. MUITO bêbado. Cê nem vai acreditar o que ele falou pra mim..."
"Você sabe que odeio suspense! Fala logo!"
"Depois que ele se despediu da mãe, ele me abraçou e sussurrou no meu ouvido que eu tava 'gostosinha demais' enquanto se despedia de mim."
"Mentira! Você falou pra mãe né?"
"É claro. Mas só no outro dia, quando tava sóbria."
"Que nojo dele!", Isabela respondeu. Pensava que ele era legal, educado e gentil; enquanto sóbrio, pelo menos. Mas o pai dela e de Beatriz também era assim...
"E a mãe, como ficou?"
"Ela me agradeceu. Ficou triste por alguns dias, mas logo achou outro. Ela tá arrasando no Tinder kkkk"
"Que bom rs", sentiu-se aliviada. Sua mãe era bastante bonita, e ainda era jovem. Tinha apenas 36 anos. Isabela continuou: "e aí... me fala desse novo ficante da mãe..."
"Ele se chama Rodrigo. Eles só saíram duas vezes. Não é tão bonito quanto o outro e é mais baixo, mas gostei dele. Parece ser gente boa, trabalhador. É empresário (tem carrão kkk)"
"Tomara que dê certo dessa vez", respondeu. Isabela rezava pela mãe todos os dias. Lembrou-se das noites em que ficara acordada, abraçada com Beatriz, escutando Mariana chorar sozinha no quarto ao lado, que outrora também fora de seu pai. Beatriz e Isabela dormiram juntas por muito tempo. Tinham medo. Não sabiam de quê, mas Deus, como tinham medo. A casa tornou-se outro lugar depois que o pai partira. A soturnidade que se apoderou daquele lugar a amedrontava, mas não do mesmo tanto que o olhar opaco que surgira no rosto da Mariana. Ela ficou sem falar por vários dias, e deslocava-se como um espectro na residência, sempre em silêncio, e aquele ameno sorriso, que Isabela tanto gostava de ver nela, desvanecera.
"Posso dormir com você, Isa?", perguntara-lhe a irmã caçula uma vez no meio da madrugada, enquanto as lástimas da senhora sua mãe ecoavam por toda a casa. Moravam num lugar pequeno, com paredes finas.
"Claro que pode, Bia", dissera aliviada. Também não queria dormir sozinha. Lembrou-se do quão forte Beatriz abraçara-lhe, com os braços tremendo. Dizia que não se importava com o fato do pai ter partido, pois raramente esteve presente mesmo. Bar e bebida. Era isso o que ele fazia quase todos os dias. Porém, Isabela percebeu que a irmã caçula de fato sentia falta dele. Afinal, era melhor ter um pai que raramente estava presente do que ter um sempre ausente. Mas entendia a rebeldia de Beatriz, pois também sentia-se assim às vezes. Quando ele chegava, bêbado, do bar, comia, brigava com Mariana, dormia e roncava. Porém, as coisas nem sempre foram assim. Quando Isabela era criança, ele era outra pessoa... um bom pai. Nos finais de semana, ele levava Isabela e a irmã para o único parque da cidade para pedalar e brincar. 'Rosa' era o nome da bicicleta de Isabela, apesar de ser mais prata do que rosa. Já a de Beatriz era azul, mas ela recusava-se-lhe a dar apelido para a bicicleta.
"Dar nome pra bicicleta é coisa de criança", dizia Beatriz, aos 9 anos de idade. Uma vez, provocou Isabela:
"Sua bicicleta é mais prata do que rosa, bobona."
"Pai, ouviu do que a Beatriz me chamou?"
"Se não pararem de brigar, levo as duas de volta pra casa", ele dissera rispidamente. As duas se calaram. Isabela postou os olhos no chão, cabisbaixa, já Beatriz fez cara de emburrada. Pouco tempo depois, quando começaram a andar de bicicleta, sorria-lhe o pai. Recordou-se da radiante expressão no rosto dele. Estava... feliz.
"Pronta?", perguntou-lhe o pai num dia ensolarado de domingo.
"Não vou conseguir, papai", respondera Isabela, amedrontada.
"Sua irmã consegue, por que não você? Confia em mim, tá? Se você for cair, papai te segura."
"Promete?"
"Prometo."
Nunca andara de bicicleta sem as rodinhas antes. Temia cair de cara no chão e perder-lhe alguns dos dentes, ficando banguela igual à Nilce, a bibliotecária.
"Isaaa, Isaaa, vai cair na pistaaa", cantara Beatriz enquanto pedalava por alí sem o auxílio de rodinhas.
"Beatriz, para!", repreendera-lhe o pai.
"Pronta?"
"Sim."
Isabela começou a pedalar. Continuou e não parou. Estava indo rápido. Dançaram-lhe ao vento os longos cabelos cacheados. Fechou os olhos e deixou a agradável bafagem do parque beijar-lhe o rosto. Sentia-se segura enquanto o pai estivesse ali.
"Quando vai me soltar, papai?"
"Já soltei, meu bem."
"O quê?", dissera surpresa. Perdeu o equilíbrio e foi de encontro ao chão; ela aninhou-se, pronta para o impacto, mas antes de cair, os braços do pai a seguraram. Estava a salvo. Desde que ele estivesse ali com ela, não ficaria desdentada igual à Nilce.
"Quase conseguiu, meu amor", ele dissera, "quer tentar de novo?"
"Quero, papai."
"Isaaa, Isaaa, quase caiu na pistaaa!"
"Beatriz, papai vai te pegar, sua atentada!"
Ela gritou e começou a pedalar com força para longe dali.
"Foge, bicicleta! Me salva!"
Ele a alcançou, retirou-a de cima da bicicleta e fez cócegas na pequena malandrinha até ela chorar de rir...
Isabela não sabia se essa memória retratava algo que realmente ocorrera, ou se isso não passava de um sonho macróbio que tivera. Sequer tinha certeza se as feições do pai, pintadas no quadro da imaginação, representavam corretamente a aparência dele. Ele tornou-se um ser metamorfo em sua mente. Às vezes, imaginava-o com o rosto redondo e com o nariz achatado; outras, o idealizava com o rosto fino e com o nariz empinado. Mas tinha certeza de que ele era loiro, de cabelos cacheados. O fato de Mariana ter feito Isabela e Beatriz desfazerem-se de todas as fotos que tinham dele não a ajudava a recordar.
"É melhor esquecer", pensou, "ele está no passado. Deixe-o lá."
Porém, algumas memórias recusavam-se a ir embora; ficavam dentro da cabeça de Isabela como se ali fosse um teatro onde as mesmas peças eram apresentadas repetidamente. Agora, as cortinas se abriam-se-lhe mais uma vez na mente, e Isabela via o pai tocando violão. Ao redor dele estavam Beatriz, sua mãe e si mesma regalando-se com aquela exibição. Ele cantava "Love me Tender", música que tocou quando casou-se com Mariana. Tinha uma voz bela. Mariana chorava e olhava para ele, com as mãos fechadas em frente ao próprio peito, como se temesse que o coração fosse rasgar-lhe o tórax e cair para fora. Beatriz cantava junto, e Isabela sorria. Viu lágrimas acumularem-se nos próprios olhos.
"Como era boba", reprimiu a imagem antiga de si mesma no teatro de suas memórias, "nessa época, ainda acreditava que ele poderia mudar. Todas nós acreditávamos que ele poderia mudar..."
Quando o pai terminou de tocar e cantar, entregou um buquê de flores para a mãe das meninas; pedido de desculpas por uma das inúmeras vezes que chegara bêbado em casa gritando, brigando, reclamando. Ele ficara tão agressivo nessa noite que, ao ser confrontado por Beatriz, a puxou pelo cabelo e bradou:
"Me respeita! Pago as contas de todo mundo aqui e trabalho o dia todo! Não tenho o direito de beber com meus amigos? Não tenho, porra?!"
Todas elas ficaram aturdidas. Imediatamente, ele percebeu o que fizera. Pediu desculpas e se trancou dentro do quarto de casal, sozinho. Elas dormiram juntas naquela noite. Beatriz verteu lágrimas como Isabela nunca vira antes. Pensava que ela iria reagir quando o pai a puxou pelo cabelo. Mas não... apenas fechou os olhos e se encolheu, amedrontada e indefesa, como se esperasse o impacto de um soco ou de um tapa. No dia seguinte, lá estava ele com um violão e um buquê de rosas em mãos.
"Prometo que não acontecerá de novo, minhas lindas", ele dissera enquanto abraçava as três, "vocês são tudo pra mim. Vou buscar tratamento. Vou... melhorar."
Fez tratamento e, por pouco tempo, melhorou. Mas então, voltou a beber. E bebeu mais, e mais e mais. Apesar de serem humildes, tentaram de tudo: terapia, psicólogos, psiquiatras e até mesmo buscaram ajuda na igreja. Nada funcionou.
As cortinas vermelhas fecharam-se-lhe e abriram-se-lhe novamente na memória...
Estava escuro e o pai de Isabela encontrava-se sozinho no meio da sala de estar, segurando uma garrafa de plástico cheia de um líquido tão transparente quanto água. Ela sabia o que havia ali. O cheiro e o gosto ardente da bebida queimaram-lhe as narinas, a boca e o esôfago. Remexeu-se-lhe o intestino como uma serpente em protesto, e ela quase vomitou. Viu a própria imagem penetrar a escuridão da sala. De pijama e esfregando os olhos, dirigia-se à cozinha para beber água, quando o viu sentado na sofá, bêbado e em silêncio.
"Pai?", ela perguntou, "o senhor está bem?"
"Não, filha", ele respondeu, fechou os olhos. Lágrimas umedeceram-lhe o rosto. Ela aproximou-se dele, e ele a abraçou.
"Me desculpe, meu bem", disse aos prantos, "eu... não consigo", soluçou, "n-não consigo!"
O olhar dele estava tão vermelho que suas escleras pareciam ser feitas de sangue. Círculos negros contornavam-lhe os olhos, e a feição que tinha... derrotado, desesperado, viciado. Um escravo do copo. A expressão em seu rosto era a de alguém que implorava ajuda, mas sabia que já tinha sido derrotado. Queria se salvar, mas já tinha perdido. O que sobrava para ele era ver tudo ao seu redor desmoronar lentamente... de pouco em pouco, dia após dia, copo após copo, trago após trago. Um purgatório de prazeres imediatos e miséria prolongada. Condenado a sentir o efêmero deleite que o álcool o propiciava transformar-se em dor e arrependimento no próximo dia; condenado a ver a própria família distanciado-se cada vez mais; condenado a ver tudo o que construira ao longo dos anos transformar-se em pó. Isabela estava acostumada a vê-lo bêbado. Também já tinha se acostumado a vê-lo recair nos velhos hábitos e depois dizer:
"Dessa vez vou parar de beber, prometo!"
Porém, ela não conseguiu se conter. Afinal, era seu pai. Choraram juntos naquela noite, e ela o ajudou a caminhar até o quarto e deitar-se na cama, onde sua mãe já se encolhia, sozinha, dentre os lençóis.
"Te amo, pai", disse enquanto o cobria.
"Também te amo, meu amor. Vou mudar, prometo."
"Burra! Como pôde acreditar nele?!", reprimiu o próprio reflexo, que abraçava o pai no palco de suas lembranças, "Disse que me amava, mas não mudou. Fugiu!"
As cortinas carmesim se fecharam, mas Isabela sabia que a história não acabava ali. Alguns dias após esse ocorrido, o pai de Isabela fugiu. Levou apenas algumas roupas consigo. Deixou o carro, o celular, a carteira e todo o restante para trás. Foram à delegacia de polícia, registraram um Boletim de Ocorrência, publicaram avisos no jornal da cidade e nas redes sociais, conversaram com amigos, colegas e parentes distantes e até chegaram a pegar empréstimo do banco para contratar um detetive particular. Tudo isso em vão. Isabela nunca mais viu o pai. Com o tempo, temor transformou-se em tristeza, tristeza transformou-se em rancor, rancor trasnformou-se em apatia e então, finalmente, apatia transformou-se em gratidão.
"Não precisamos dele. Na verdade, estamos melhor sem ele", pensou. Depois que ele desaparecera, Isabela passou no vestibular da universidade federal do estado, se mudou e começou a morar sozinha. Em breve, Beatriz faria o mesmo. Sentia pena da mãe, que precisou começar a trabalhar em dobro para bancar as filhas. Mas tudo iria melhorar em breve.
"Tenho que estudar", pensou, "estudar bastante para ser rica e comprar uma casa para minha mãe. Ela terá tudo do bom e do melhor!"
O celular tremeu-lhe nas mãos. Tinha ignorado as mensagens de Beatriz por alguns minutos novamente.
"Ou... tá aí?", perguntou Bia por mensagem.
"Sim..."
"Só queria te falar mais uma coisa..."
"Fala logo"
"A mãe anda com um comportamento meio estranho."
"Como assim?"
"Ela anda tendo pesadelos com frequência. Um dia desses, ela gritou tão alto que pensei que tinha alguém dentro do quarto dela, a agredindo."
"Deve ser estresse", Isa respondeu, "ela trabalha muito, Bia. Ela ainda vai ao psicólogo?"
"Sim, mas nem mesmo quando o pai sumiu ela ficou desse jeito. Às vezes, ouço ela falando sozinha, sussurrando coisas e olhando para o nada, como se estivesse no celular ou como se alguém estivesse perto dela. Mas quando me aproximo e olho, não há ninguém ali e não tá no celular"
"Nossa", respondeu espantada.
"O pior foi uma vez que acordei no meio da noite e a vi de pé ao lado da minha cama, parada."
"A mãe virou sonâmbula?"
"Não sei... só sei que fiquei assustada. Ela estava me olhando! Quando levantei e me aproximei, os olhos dela me acompanharam... até quando a levei de volta pra a cama e saí do quarto, ela continuou me olhando..."
"Você ainda tem o número do psicólogo dela?"
"Tenho."
"Entre em contato com ele. Diga tudo. Fique de olho, Bia... pode ser coisa séria"
O interfone da kitnet tocou.
"Bia, acho que o Rafael chegou. Vou nessa. Por favor, me mantenha informada. Qualquer coisa que acontecer, é pra me falar, tá bem?"
"Sim, senhora. Vai lá cortar o barato do boy rs"
"Beijão rs"
"Te amo, sua cafona", disse Bia.
"Também te amo, sua chata."
Isabela atendeu ao interfone. Era Rafael.
Ass: Wally