domingo, 24 de dezembro de 2023

O que é o Natal?

É apenas folga e ócio?
Só descanso, só lazer?
É apenas tempo dócil?
Breve pausa, pode ser?

É, talvez, Papai Noel?
Só presente caro e bom?
É festim e mui pitéu?
Só comida, drink e som?

É apenas festa e neve?
Só enfeite e pisca-pisca?
É apenas dita breve?
Lesta luz, fugaz faísca?

Digo a ti, dileto amigo:
É, deveras, muito mais;
É de outrora, muito antigo,
Muito velho, até demais.

É o conto de um Menino
Tão modesto, o meu Senhor;
Tão perfeito, tão divino,
Tão sobejo o Seu amor.

É amor de mãe perfeita,
Tão feliz com seu neném;
É a mãe por Deus eleita,
Leda a Virgem de Belém.

Brinde e ria, meu amigo;
Veio a nós o meu Senhor!
Beba e coma, pois, te digo:
Veio Cristo salvador!

Lá, na cruz, o Rei Judeu 
É, de nós, o redentor
Pois a morte Deus venceu
Tão sobejo o Seu amor.

Ass: Wally

quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Soneto laudatório a Selene, deusa da lua, rainha da noite e do silêncio

Eu clamo a ti, donosa e nívea nume
Que rege a lua, seu ameno leito,
Argênteo e tácito olho, a mim afeito;
Da noite, puro rosto, guapo lume.

Então, Selene, escute o meu queixume:
Convide Leto a meu jazigo estreito;
Amaine a estafa em meu arfante peito;
Derrame em mim o sono, seu perfume!

Descenda, diva, e traga a mim Morfeu.
Oferte a mim estrelas, seu ornato,
Quiçá, durante o sono eterno meu;
Quiçá, até convide Nix ou Tânato.

Selene, deusa, dê-me o elixir:
Assim, igual a Hélio, vou dormir.

Ass: Wally

domingo, 6 de agosto de 2023

Loas a Josete

Benquista mãe, dedico-lhe este canto,
Encômio humilde a ti, mamãe ciosa;
Amor da minha vida, minha rosa;
Jucundo o meu jardim, o seu recanto.

Dedico, então, feliz, mamãe donosa,
Um hino à sua efígie que amo tanto:
A flor que aqui cultivo, um lume eu planto,
Que adita e canta assaz, melíflua prosa,

Que emite régia luz e doce olor.
Pedi a Virgílio e Dante um belo verso
Que a ti fizesse jus, airosa flor,

Mas nunca, alhures, viram tanto emerso
Ingente e guapa rosa e seu fulgor,
Que adorna o seu jardim, sacrário terso.

Ass: Wally

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Soneto a Javé

Enfim cansei, Javé, do Seu mistério!
Egrégio o amor de Ti, também haurido;
Demonstra Teu caminho a ser corrido
E escuta o meu planger deveras sério.

Me diz se, como Adão, me vou, caído,
Além do Seu Jardim, do Seu Império, 
Rezar a um deus qualquer, um deus sumério, 
Distante, além do Céu a mim querido. 

Seria eu qual dos filhos seus, Noé?
Prosápia infausta, fausta, vil desdita?
Seria eu Sem ou Cam, talvez Jafé?

Então me diz, Javé, e não me evita!
Preciso andar no vale, só, a pé?
Eu não mereço o Teu amor semita?

Ass: Wally

terça-feira, 18 de julho de 2023

Ode a bebê Jesus, Luz do mundo

Na Bíblia, Lucas diz: a Luz nascia

Em véus, pastores, magos, noite fria;

Belém, Judéia, Sua mãe sorria; 

Advém a Fé do ventre seu, Maria.


Correu de Herodes, grande raiva tinha;

Bebê Jesus, seguro, dentre a vinha;

Feliz aquela mãe que não sozinha 

O fez O Rei dos reis, dos servos, rainhas.


Ass: Wally


segunda-feira, 17 de julho de 2023

Iambo à família, a luz da sociedade

Papai me ordena: assinto, choro e faço;

Mamãe: bebê no colo, amor no abraço;

Irmãos: pilhéria, briga, andar descalço.

Família augusta, amor excelso, de aço; 

Amor dileto, puro, não-devasso,

Transcende o tempo e o cosmo, além do espaço!

Ass: Wally

domingo, 22 de janeiro de 2023

O romper da aurora

 Encrustado em meu quarto

Vou afundando até sumir

Perdido em memórias tristes

Já não tenho pra onde ir


Refaço aquele mesmo caminho

Dos tempos de outrora

As pessoas sumiram, tudo mudou

Não percebi o romper da aurora


Tentando manter a lucidez

Em momentos desapercebidos

Sentindo o vento da madrugada

E esquivando dos perigos


Paisagem noturna, gótica

Vejo o balançar dos galhos

Tentando encontrar descanso

Enquanto cai o fino orvalho


Ass: Flipper




sábado, 21 de janeiro de 2023

Meiriane

 Nunca esqueci nosso momento naquele fim de tarde no colégio onde estudávamos, estávamos no ensino fundamental, ainda tínhamos aquela inocência, nunca mais consegui retornar àquele sentimento tão puro e bom, gostaria de registrar esse acontecimento pois a cada ano que se passa um pedacinho dessa lembrança parece que se perde e com as palavras posso eternizar momentos. Sentamos em uma mureta de frente para a rua, o barulho de todas aquelas outras crianças e dos carros que passavam desapareceu e de repente éramos só eu e você e nada nem ninguém poderia interromper o que estava acontecendo ali. Você olhou diretamente e profundo na minha retina com aqueles seus olhos claros e encantadores, dignos de admiração, e eu como se caído em um feitiço fiquei paralisado olhando também fixamente sem piscar, nenhum de nós conseguia emitir palavra alguma, aquele momento de alguns segundos pareciam horas, o tempo parou e nos conectamos em uma dimensão à parte a qual eu nunca tinha ido antes, seus cabelos balançavam lentamente com a brisa suave que soprava naquele instante, algo desconhecido para nós acontecia naquele momento, Meiriane se levantou, deu um sorriso e foi embora. O fato é que mesmo após décadas, não sei explicar o motivo, essa recordação vem na mente como uma bóia cheia de ar que sobe com rapidez até a superfície d'água, como se meu subconsciente clamasse por algo parecido de novo, mas o tempo passou e me sinto a cada dia mais gélido, indiferente a qualquer tipo de emoção. Nunca mais tive notícias da Meiriane, posso encontrá-la somente nas memórias mais nostálgicas do meu ser.


Ass: Flipper

sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Densa penumbra

 A cada dia que se passa

Me distancio da raça humana

Um vazio ainda me persegue

Sentimento frio que do peito emana


Tenho lembranças das quais nunca vivi

Flashbacks borbulham na minha mente

Se por ironia do destino desse certo

Como será que estaria a gente?


Gastei todas as fichas cedo demais

Apostei coisas que eu nem tinha

Me perco dentro de mim mesmo

Com subjetividade nas entrelinhas


Objetos inanimados me observam

Angustiado, um tanto quanto prostrado

Sem forças para recomeçar

Algo destinado a dar errado


Me tornei frio como a neve

Imerso em uma densa penumbra

Embalsamado e preso neste plano

Escritos vazios em uma tumba


Ass: Flipper

domingo, 12 de julho de 2020

Jayson, o homem transumano

 "Acreditar que não existe um Deus, é o mesmo que ignorar estar vivo"

 Conta-se que há muitos e muitos anos os homens nasciam, mamavam no seio de suas mães, perdiam a inocência ao passar da tenra idade, adquiriam a violência e a audácia no tempo que era denominado pela biologia de adolescência; por fim, adquiriam algum conhecimento e exerciam um ofício até chegar a velhice. 
O ato final da vida dos homens chamava-se morte. Em que pese isso parecer loucura nos dias atuais, os homens realmente morriam, isso foi assim durante muito tempo. 

 Jayson se levantou da cama entupido de enfado. 

 A ideia do suicídio não parecia ruim aos olhos de Jayson, já há séculos tinha iniciado seu planejamento, mas faltava-lhe coragem. 

 Certa vez assistiu um filme gravado ainda na era pré histórica, em que um rapaz condenado a prisão perpétua cumpriria pena numa daquelas penitenciárias imundas  da antiga América. 
 Angustiado em saber que passaria o resto de sua vida atrás das grades, recebeu o conselho de um senhor de idade que havia passado toda sua vida ali, o conselho era o seguinte: 

"acorde cedo, escove os dentes, tome café, e vá trabalhar,  tire um tempo no almoço, leia um livro, dedique-se a atividade intelectual, tome um pouco de sol quando possível e faça uma caminhada pelo menos uma vez ao dia. Ainda que esteja cansado não se deleite a preguiça e monotonia ao longo do dia, jamais  procrastine ou adie obrigações, volte a sua cela, jante e durma, tente descansar a noite e
produzir ao dia, exatamente como faria se estivesse lá fora, encontrará liberdade e um pouco de paz em seguir uma rotina" 

 Jayson procurava seguir esse conselho, em que pese ninguém mais no mundo esteja preocupado com a atividade intelectual ou com o labor de trabalho. 

 Essas preocupações mundanas não são mais relevantes, trabalho é uma coisa que os homens pré históricos tinham de fazer para se manter quando ainda existiam bilhões de pessoas na Terra e os homens lutavam por alimentos, moradia e dinheiro. 

 Ah, "dinheiro" é uma coisa que existiu nesse tempo, é complicado explicar, mas era essencial, pra qualquer coisa se precisava de dinheiro. 

 No mundo antigo as pessoas precisavam lutar pelo conforto, pela saúde e até mesmo pela sobrevivência. Os homens precisavam lutar contra seus próprios desejos, a maioria dos prazeres era condenado pelo falso moralismo, os homens eram escravos de religiões, que incutiam em suas mentes a ideia de que o trabalho os dignificaria.    

 Há algumas dezenas de anos Jayson decidiu não mais usar drogas, passou a buscar o prazer tão somente na bebida, mas depois de um tempo percebeu também que não fazia sentido ingerir algo para sentir prazer em dançar, o prazer não deveria estar na própria dança? 

 Mais ou menos nessa época decidiu também que não mudaria mais de sexo, seria Jayson, do sexo
masculino, pra sempre. 

 O porquê disso não se sabe, mas aparentemente Jayson se sentiu mais confiante, ou para descrever
melhor, menos instável. 

 Passado algum tempo, percebeu também que as relações sexuais praticadas com frequência não 
o fazia mais feliz, assim como o ato de praticar o sexo sempre com pessoas diferentes.

 Certo dia, Jayson começou a trabalhar, ainda que não precisasse de trabalho, ainda que não houvesse demanda ou necessidade no mundo, Jayson sentiu a necessidade de produzir, a necessidade vinha de dentro, era com ele mesmo, ele era sua própria demanda e a satisfação pessoal o seu próprio salário. 

 A estabilidade pareceu boa aos olhos de Jayson. Boa até demais. E faltava isso ao mundo.

 A maioria dos homens não se preocupavam com isso, usavam drogas todos os dias, mudavam de sexo todos os dias, bebiam, praticavam orgia entre si e deleitavam-se em seus prazeres eternos. 

 Não havia um dia monótono no paraíso a não ser pra Jayson. 

 Esse tipo de pensamento começou a angustiá-lo. Sentiu-se sozinho, percebeu que sua tristeza  vinha do conhecimento "maldita hora que decidi ler manuscritos pré históricos e voltar a ver filmes". 

 Jayson sabia que não podia dar cabo a sua vida, pois isso significaria a condenação eterna, mas pensou só por alguns instantes naquele momento, um pequeno momento que mudaria sua vida para sempre, aquele saudoso momento há milênios de anos em que optou pela imortalidade. 

 Depois que adquiriu certa dose de conhecimento, Jayson entristeceu-se muito e passou a praguejar a ciência, Jayson sentia-se enganado pelos poderosos que o prometeram a vida eterna. 

 Mas a realidade é que Jayson fez sua própria escolha, ninguém o obrigou a submeter-se a implantação do chip da imortalidade, ninguém o obrigou a mesclar o barro de seu gene com o ferro da tecnologia. 
 Não foi à força, foi decisão espontânea sua, todos tiveram o direito de escolher, poderia ter morrido ali, aos quarenta e poucos anos de idade, juntamente com seus pais, no mundo antigo. 

 A esse ponto vocês querem saber se Jayson sucumbiu ao suicídio, talvez vocês se perguntem o que aconteceria caso o tentasse? Mas a resposta pra essa pergunta todos sabem, em que pese essa vida de faz de contas, todas nossas escolhas são conscientes. 

 Todo homem no fundo crê em Deus. 

por: Chaves

domingo, 14 de junho de 2020

A Gravidez de Isabela: Capítulo Um

"Tem certeza que vai fazer isso?", o contato 'Maninha' perguntou por mensagem de celular.

"É o certo. Você deveria fazer o mesmo", Isabela respondeu.

"Tá doida? Sexo só depois do casamento? Consigo não kkk não sei de onde tirou essa viagem."

"... da Bíblia?", respondeu Isabela.

"Se diz na bíblia que se uma mulher cometer adultério, deve ser apedrejada até a morte. Concorda com isso também?"

"Não. Em João 8, Jesus Cristo salvou do apedrejamento uma mulher que cometera adultério. 'Se algum de vocês estiver sem pecado, seja o primeiro a atirar pedra nela', ele disse."

"A Bíblia é cheia de contradições, Isa."

"Não são contradições, mas sim complementações. Da mesma forma que você não pode saber a moral de uma história antes de ler até o final, não se deve pegar um parágrafo isolado da Bíblia e sair por aí falando que é isso que o livro quer transmitir para os leitores."

"Uma parte diz pra apedrejar; outra, pra mostrar misericórdia. É uma contradição para mim."

"Tá. Pense o que quiser."

Não trocaram mensagens por alguns minutos. Sua irmã era cética quando o assunto era religião, mas nem sempre fora assim. Quando eram mais jovens, liam a Bíblia Sagrada e rezavam juntas antes de dormir, além de ir à missa aos domingos. Mariana, mãe das duas, as estimulava a seguir a palavra de Deus, pois era uma católica devota. Lembrou-se de quando acordava cedo aos domingos, tomava café ao lado da família e iam juntos à igreja. Adorava os ensinamentos e as histórias da Bíblia, e quando Isabela completou 12 anos, já tinha lido o livro duas vezes, apesar de nem sempre compreender a moral do que estava escrito ali. Não entendia por que Adão e Eva apenas perceberam estar nus depois de comer o fruto proibido; não entendia por que Deus favorecia tanto Abel, mas não Cain, o que levou este a matar aquele; não entendia por que Noé amaldiçoou o filho Cam pelo simples fato deste ter visto o pai nu. Várias coisas sobre o Cristianismo a intrigavam, e quando tinha dúvidas, buscava respostas com a mãe. Aos 10 anos de idade, perguntou à Mariana por que ir à missa e por que devia se ajoelhar ao rezar. Gostava daquele, mas nem tanto deste.

"Por que cuida de suas bonecas, Isinha?", sua mãe perguntara sorrindo.

"Porque gosto delas", respondera, sem saber o que bonecas tinham a ver com igreja, missas e joelhos doloridos.

"É grata por ter suas bonecas?"

"Sim. Por que estamos falando das minhas bonecas, mamãe?"

"E se não fosse grata, cuidaria delas mesmo assim?"

"... não", dissera perplexa.

"Posso dizer então, meu amor, que cuidamos de tudo o que gostamos apenas quando somos gratos?"

"... sim", respondera confusa.

"E quando você é grata por algum presente que o papai ou a mamãe te dão, o que você fala?"

"... obrigada?", a pequena Isa redarguira, com medo de dar a resposta que sua mãe não esperava.

"Exatamente, meu bem!", um sorriso jubiloso encrespou-lhe os lábios da mãe; sorriso esse que Isabela nunca esquecera, "Por isso é importante ir à igreja, Isinha; para agradecer a Deus. Foi Ele quem nos deu tudo o que temos: nossa casa, o seu bem-estar, o de seu papai, o de sua irmãzinha e o meu"

"Mas pra que ajoelhar? Machuca... por que não podemos agradecer de pé?"

"Podemos, mas apenas pela humildade demonstra-se verdadeira gratidão. Por isso nos ajoelhamos quando vamos rezar; para mostrar a Deus que somos humildes."

O sorriso que a senhora sua mãe esboçara, tão sereno e doce quanto a suave brisa do prelúdio da manhã, adornou-lhe os pensamentos. Mariana era bela e jovem. Casara-se com o pai de Isabela aos 16 anos de idade e após um ano, já tinha concebido. Quis ver sua mãe novamente. Quis abraçá-la, beber café com ela e contá-la tudo o que acontecera nos últimos meses. Quis acompanhá-la à igreja e falar sobre a Bíblia com ela. Porém, nos últimos dois anos, Isabela passou a fazer isso sozinha. Tudo mudou após Mariana ser abandonada pelo marido. Isabela foi a única da família que continuou dedicada à religião. Não culpava a mãe ou a irmã por perderem a fé, pois ela mesma sintia-se perdida às vezes. Mas achava conforto entre as páginas da Bíblia, ou nos belos e reverberantes coros das missas matinais, ou até mesmo em um confessionário, com os joelhos prostrados sobre o genuflexório.

"Não sente peso na consciência?", enviou outra mensagem para a irmã.

"Pelo quê?"

"Por ter feito sexo antes do casamento..."

"Pq deveria me sentir assim? O corpo é meu... faço oq quiser com ele. Vc tem que largar de ser boba e parar de se culpar por ter ficado com alguém que gosta. Tb sou católica, mas não vivo na idade média", ela respondeu.

"É porque... sei lá. Não me sinto bem", respondeu Isa. Quando acabara de entrar na adolescência, pensava que a primeira vez que fizesse amor seria algo mágico, o que não se concretizou. O que sua irmã a contara sobre o sexo pouco ajudou Isabela a criar expectativas mais realistas.

"Dói? Sai muito sangue?", Isa perguntara.

"Não doeu, mas saiu um pouco de sangue", sua irmã respondera, "você vai viciar quando fizer", dissera mordendo os lábios e rindo. Isabela sentiu-se enganada. Quando fez sexo com o namorado pela primeira vez, pensou que iria desmaiar de tanta dor e que precisaria ser socorrida até o hospital para receber transfusão de sangue.

"Não se sente bem durante o sexo?", perguntou a irmã por mensagem, trazendo Isabela de volta ao aqui e agora, "Então precisa trocar de boy, não parar de transar rs"

"Não, sua besta", Isa respondeu, "é ótimo durante o sexo. O problema é que depois me sinto... mal. Como se algo pesado estivesse ao meu redor, me observando, me sufocando. É difícil explicar."

"Eu hein... isso é viagem sua. Só fazer de novo que passa... quantas vezes seguidas vcs aguentam? rs"

"Isso tá ficando pessoal demais, Bia kkk", ela respondeu.

"Olha, se vc não se sente bem, fala com ele mesmo. O importante é ser feliz", mandou vários corações após a mensagem. Isabela também respondeu com corações. 

"Só toma cuidado com o jeito que vc vai falar"

"Por quê?", perguntou Isabela.

"Homens são mais inseguros do que vc pensa. Principalmente quando o assunto é sexo. Ele pode pensar que vc não gosta dele ou até mesmo que tá interessada em outra pessoa."

"É sério?"

"Sério. É nisso que dá ficar encalhada até quase os 20... sabe de nada, inocente kkk"

"Até quase os 19", Isabela a corrigiu e enviou o emoji de carinha descontente.

"19 é quase 20", Bia respondeu com o emoji fazendo careta. Continuou:

"Quando o Henrique tá afim e eu não, faço do mesmo jeito."

"Ele não percebe que você não tá afim?", Isabela perguntou.

"Não. É só gemer e sussurrar no ouvido dele que tô com tesão e pronto. Em alguns minutos, problema resolvido."

"E como entra? Não fica seco demais?"

"Lubrificante. Na falta, vai na saliva mesmo."

"Eca!"

"Vc que perguntou. Vai me falar que ele nunca deu uma cuspidinha lá embaixo?", enviou uma carinha chorando de rir.

"Que nojo! Chega desse assunto..."

Beatriz enviou várias carinhas chorando de rir. Isabela não sabia se ela falava a verdade ou se somente a provocava. Recordou-se do dia em que Beatriz começara a se relacionar com Henrique:

"É gato, viu, Isa. Gato e gente boa", dissera. Beatriz era um ano e alguns meses mais nova do que Isabela, mas sempre estivera à sua frente quando o assunto era garotos e namoro. Quando se tornaram adolescentes, prometeram uma à outra não manter segredos sobre nada. Isso incluía compartilhar quem gostavam na escola, quem queriam beijar, e se beijassem, tinham a obrigação de contar uma para a outra o ocorrido. Beatriz foi a primeira a compartilhar a experiência com Isabela quando tinha apenas 13 anos:

"É muito bom!", dissera extasiada.

"É difícil?"

"Nada, Isa. É só fechar os olhos e colocar a língua pra fora. Assim, ó", espetou-se-lhe a língua para fora da boca, vermelha e cheia de baba, "e depfois é sfó mefer", movimentou a língua de um lado para o outro enquanto baba deslizava-lhe pelos lábios.

"Para, nojenta!", sabia que ela fazia aquilo de propósito. Beatriz riu. Adorava caçoar a irmã mais velha. Isabela fingia não gostar, mas no fundo, se divertia. Quando finalmente contou para a irmã mais nova sobre seu primeiro beijo, aos 16 anos de idade, Isabela protestou:

"Você falou que era bom!"

"Mas é bom! É só chupar a língua um do outro. Não tem segredo!"

"Não é 'só isso' não!"

"O que rolou?", Beatriz perguntara aos risos.

"Quase quebrei os meus dentes da frente de tanto bater nos dele! Ele também babou na minha boca toda! Foi nojento!"

Betriz riu tanto que lágrimas rolaram-lhe rosto abaixo.

"Para de rir, sua chata!", Isabela reclamara. Tentou soar séria, mas deixou escapar um leve riso.

"Nisso que dá ficar com nerd de biblioteca, Isa", Beatriz dissera gargalhando. Ela respirou fundo, limpou as lágrimas do rosto e perguntou:

"Ele já tinha beijado antes?"

"Não sei."

"Você tem que ficar com rapazes mais velhos. Eles sabem beijar melhor porque têm mais experiência."

Mas Isabela não conhecia rapazes mais velhos. Mal tinha amigos. Na escola, às vezes, conversava com uma garota chamada Thyana, que sentava perto de Isabela durante as provas para pedir cola, e Nilce, a bibliotecária. Durante o recreio, a biblioteca era o seu lugar predileto, ao contrário de Beatriz, que ficava no pátio, conversando com os amigos. Isa gostava do silêncio, apenas quebrado pelo virar das páginas de livros ou dos ocasionais pigarros carregados de Nilce. Foi na biblioteca que conhecera Rodolfo, rapaz com quem teria seu primeiro beijo. Malgrado o rosto cheio de espinhas, Isabela o achava até bonitinho. Já o tinha visto nos corredores da escola, mas nunca tinham conversado. Um dia, durante o recreio, sentada em uma estridente cadeira, Isabela perdia-se nas cativantes páginas de Memórias Póstumas de Brás Cubas quando viu o jovem devolvendo um velho livro para Nilce. Curiosa, Isabela semicerrou os olhos na tentativa de enxergar a capa, até que o assento de madeira no qual se acomodava estalou. O barulho fez com que Rodolfo notasse a presença dela, e quando percebeu que ela fitava nele os olhos, corou. Depois desse dia, Isabela passou a vê-lo ali com mais frequência. Sempre por perto, Rodolfo a olhava de soslaio, com um livro em mãos ou examinando as prateleiras empoeiradas, mas nunca puxou assunto. Até que, alguns dias depois, ele criou coragem:

"Que livro é esse?", seu sorriso expôs o aparelho ortodôndico que visava corrigir-lhe os dentes tortos.

"Dom Casmurro", ela respondera.

"Legal", ele acenou a cabeça, "Vai cair na prova do Normandinho. Até que gostei desse livro. Geralmente não gosto dos livros de literatura que os professores passam aqui na escola, mas esse é até bom"

"Eu amei esse livro", Isabela dissera. Um breve silêncio caiu entre os dois. Então, ela perguntou:

"Que tipo de livro você gosta?"

"Senhor dos Anéis, do Tolkien", ele continuou acenando a cabeça.

"Nunca ouvi falar."

"Também tem As Crônicas de Nárnia, do Lewis, e Harry Potter, da Rowling", ele contou com os dedos, "já ouviu falar de Harry Potter, né?"

"Já", ela respondeu como se estivesse fazendo prova oral, "desse já ouvi falar! Já assisti aos filmes. Achei legal!"

"Posso te emprestar os livros se quiser", dissera, e a cabeça dele continuou se movimentando para cima e para baixo, lentamente.

"Legal. Vai que eu gosto", ela se juntou a ele e começou a acenar a cabeça também. Os dois se olharam e começaram a rir.

"Isabela, não é?", ele perguntara.

"Sim. Você é...?"

"Rodolfo. Você é do segundo C?"

"Segundo A. E você?"

"Segundo B".

Conversaram até o fim do recreio. Ao se despedirem, ele beijou-lhe bochecha.

"É um bom rapaz", dissera Nilce, olhando-a através de velhos óculos. Isabela corou. No dia seguinte, lá estava ele na biblioteca novamente com uma cópia de "Harry Potter e a Pedra Filosofal" em mãos.

"Obrigada", agradecera Isabela, sorridente. Ele ficou tão vermelho quanto um pimentão. Ela leu o livro e gostou.

"É melhor do que o filme."

"Bem melhor", ele concordara.

Rodolfo continuou emprestanto-lhe os livros até Isabela ter lido toda a saga. Após cada volume, eles conversavam sobre a história, personagens, vilões. Isa sentiu-se surpresa em descobrir que gostava de falar a respeito de algo inusitado, pelo menos para ela; nunca se imaginara discutindo sobre bruxos, magia e dragões.

"Qual é o seu personagem predileto?", ele perguntara.

"Hermione."

"Sabia que diria isso", ele sorriu.

"Por quê?"

"Você se parece muito com ela."

Isabela riu.

"Como assim?"

"Bem... err... vocês duas são inteligentes e... b-bonitas", ele gaguejou.

Ela ficou sem graça, mas gostou do elogio.

"Ele é até bonitinho", pensara.

"Ela é dentuça nos livros", Isabela dissera rindo, "A não ser que esteja falando dos filmes. Aquela atriz que a interpreta é bonita."

"I-isso."

"Isso o quê?", Isabela sorria, intrigada.

"I-isso que eu quis dizer. V-você é bonita igual ela. M-mais do que ela", ele dissera com o rosto avermelhado. Ela ficou sem saber o que falar.

"Será que ele gosta de mim?", pensara, "acho que sim. Bia saberia me dizer."

"Claro que sim, sua sonsa", Beatriz redarguiu dentro do quarto, em casa, mais tarde naquele mesmo dia, enquanto colocava o pijama para dormir, "por que você acha que ele diria isso pra você?"

"Não sei. Às vezes foi só um elogio sem malícia"

"Quantos anos você tem mesmo? É claro que ele tá afim!"

"Quantos anos você tem pra saber disso tudo sobre garotos?"

"Eu... sou fera, né?!", Beatriz sorriu e jogou os longos cabelos lisos para trás dos ombros.

Após alguns dias, Rodolfo ofereceu para acompanhá-la até a porta de casa depois das aulas. Ela aceitou, curiosa se ele teria coragem de beijá-la ao chegarem lá. Ele teve, e o fez em frente ao portão da casa dela. Isabela temeu que sua mãe ou que seu pai abrisse o portão naquele exato momento. Infelizmente, aquilo foi a única coisa boa que acontecera. Rodolfo parecia um cachorro com raiva do tanto que babava, e colidiram-lhe os dentes com os dela desengonçadamente mais do que algumas vezes. Após o beijo, havia saliva até mesmo no pescoço de Isabela, e doía-lhe a boca. Depois daquele dia, Rodolfo nunca mais apareceu na biblioteca. Chegou a vê-lo nos corredores da escola, mas sempre que percebia que ela tinha o avistado, ele desviava o olhar e seguia numa direção diferente da dela.

"Ele deve ter achado ruim também", pensara, triste. Não gostou de beijá-lo, mas apreciava a companhia dele; apreciava passar o recreio conversando com o garoto sobre magia e magos, dragões e vilões. Estimava até mesmo os estranhos e desajeitados elogios que ele fazia.

"Esquece, Isa. Se ele não conversou mais com você é porque não tá afim", dissera sua irmã.

"Nossa...", respondera decepcionada, "será que ele achou tão ruim assim?"

"Vocês dois beijaram mal. É normal pra primeira vez, esquenta não. Você é gata, mana. É brega pra caralho, mas é gata. Com um pouco de prática, vai ser quase tão top quanto eu", elas riram juntas. Beatriz era mestre em irritá-la, mas sempre sabia o que dizer para fazê-la sentir-se melhor.

"???", questionava a mensagem de Beatriz na tela de seu celular. Isabela se perdera nos próprios pensamentos por alguns minutos. Voltou a atenção para a conversa on-line:

"Ele vai pra sua casa hoje?", perguntou-lhe a irmã.

"Quem?"

"O presidente. Quem você acha?"

"Sim. Ele vem sim."

"Dá uma saideira pro coitado do seu cliente antes de fechar o bar kkkk"

"Você só sabe falar besteira?", escreveu. Depois, Isabela mudou de assunto:

"E a mamãe, como tá?"

"Uai... tá ok"

"Ainda tá com aquele rapaz?"

"Não. A fila andou kkk"

"Como assim??? E por que você não me falou, Bia?! O que aconteceu?"

"Uai, vc não dá notícias por quase um mês e a culpa de estar por fora das coisas é minha?"

"Estudando demais. Faculdade é TENSO. Em breve você vai ver como é."

"Uhum, estudando o corpo do Rafael, pelo que tô sabendo kkk"

"Fala aí e larga de suspense! O que foi?"

"Vc sabe que ele gosta de uma bebida né?"

"Sim, e daí?"

"Um dia desses eles foram pra boate e a mãe esqueceu a chave dela aqui. Quando ele a deixou em casa depois da balada, tive que abrir a porta de pijama porque já era madrugada... e ele tava bêbado. MUITO bêbado. Cê nem vai acreditar o que ele falou pra mim..."

"Você sabe que odeio suspense! Fala logo!"

"Depois que ele se despediu da mãe, ele me abraçou e sussurrou no meu ouvido que eu tava 'gostosinha demais' enquanto se despedia de mim."

"Mentira! Você falou pra mãe né?"

"É claro. Mas só no outro dia, quando tava sóbria."

"Que nojo dele!", Isabela respondeu. Pensava que ele era legal, educado e gentil; enquanto sóbrio, pelo menos. Mas o pai dela e de Beatriz também era assim...

"E a mãe, como ficou?"

"Ela me agradeceu. Ficou triste por alguns dias, mas logo achou outro. Ela tá arrasando no Tinder kkkk"

"Que bom rs", sentiu-se aliviada. Sua mãe era bastante bonita, e ainda era jovem. Tinha apenas 36 anos. Isabela continuou: "e aí... me fala desse novo ficante da mãe..."

"Ele se chama Rodrigo. Eles só saíram duas vezes. Não é tão bonito quanto o outro e é mais baixo, mas gostei dele. Parece ser gente boa, trabalhador. É empresário (tem carrão kkk)"

"Tomara que dê certo dessa vez", respondeu. Isabela rezava pela mãe todos os dias. Lembrou-se das noites em que ficara acordada, abraçada com Beatriz, escutando Mariana chorar sozinha no quarto ao lado, que outrora também fora de seu pai. Beatriz e Isabela dormiram juntas por muito tempo. Tinham medo. Não sabiam de quê, mas Deus, como tinham medo. A casa tornou-se outro lugar depois que o pai partira. A soturnidade que se apoderou daquele lugar a amedrontava, mas não do mesmo tanto que o olhar opaco que surgira no rosto da Mariana. Ela ficou sem falar por vários dias, e deslocava-se como um espectro na residência, sempre em silêncio, e aquele ameno sorriso, que Isabela tanto gostava de ver nela, desvanecera.

"Posso dormir com você, Isa?", perguntara-lhe a irmã caçula uma vez no meio da madrugada, enquanto as lástimas da senhora sua mãe ecoavam por toda a casa. Moravam num lugar pequeno, com paredes finas.

"Claro que pode, Bia", dissera aliviada. Também não queria dormir sozinha. Lembrou-se do quão forte Beatriz abraçara-lhe, com os braços tremendo. Dizia que não se importava com o fato do pai ter partido, pois raramente esteve presente mesmo. Bar e bebida. Era isso o que ele fazia quase todos os dias. Porém, Isabela percebeu que a irmã caçula de fato sentia falta dele. Afinal, era melhor ter um pai que raramente estava presente do que ter um sempre ausente. Mas entendia a rebeldia de Beatriz, pois também sentia-se assim às vezes. Quando ele chegava, bêbado, do bar, comia, brigava com Mariana, dormia e roncava. Porém, as coisas nem sempre foram assim. Quando Isabela era criança, ele era outra pessoa... um bom pai. Nos finais de semana, ele levava Isabela e a irmã para o único parque da cidade para pedalar e brincar. 'Rosa' era o nome da bicicleta de Isabela, apesar de ser mais prata do que rosa. Já a de Beatriz era azul, mas ela recusava-se-lhe a dar apelido para a bicicleta.

"Dar nome pra bicicleta é coisa de criança", dizia Beatriz, aos 9 anos de idade. Uma vez, provocou Isabela:

"Sua bicicleta é mais prata do que rosa, bobona."

"Pai, ouviu do que a Beatriz me chamou?"

"Se não pararem de brigar, levo as duas de volta pra casa", ele dissera rispidamente. As duas se calaram. Isabela postou os olhos no chão, cabisbaixa, já Beatriz fez cara de emburrada. Pouco tempo depois, quando começaram a andar de bicicleta, sorria-lhe o pai. Recordou-se da radiante expressão no rosto dele. Estava... feliz.

"Pronta?", perguntou-lhe o pai num dia ensolarado de domingo.

"Não vou conseguir, papai", respondera Isabela, amedrontada.

"Sua irmã consegue, por que não você? Confia em mim, tá? Se você for cair, papai te segura."

"Promete?"

"Prometo."

Nunca andara de bicicleta sem as rodinhas antes. Temia cair de cara no chão e perder-lhe alguns dos dentes, ficando banguela igual à Nilce, a bibliotecária.

"Isaaa, Isaaa, vai cair na pistaaa", cantara Beatriz enquanto pedalava por alí sem o auxílio de rodinhas.

"Beatriz, para!", repreendera-lhe o pai.

"Pronta?"

"Sim."

Isabela começou a pedalar. Continuou e não parou. Estava indo rápido. Dançaram-lhe ao vento os longos cabelos cacheados. Fechou os olhos e deixou a agradável bafagem do parque beijar-lhe o rosto. Sentia-se segura enquanto o pai estivesse ali.

"Quando vai me soltar, papai?"

"Já soltei, meu bem."

"O quê?", dissera surpresa. Perdeu o equilíbrio e foi de encontro ao chão; ela aninhou-se, pronta para o impacto, mas antes de cair, os braços do pai a seguraram. Estava a salvo. Desde que ele estivesse ali com ela, não ficaria desdentada igual à Nilce.

"Quase conseguiu, meu amor", ele dissera, "quer tentar de novo?"

"Quero, papai."

"Isaaa, Isaaa, quase caiu na pistaaa!"

"Beatriz, papai vai te pegar, sua atentada!"

Ela gritou e começou a pedalar com força para longe dali.

"Foge, bicicleta! Me salva!"

Ele a alcançou, retirou-a de cima da bicicleta e fez cócegas na pequena malandrinha até ela chorar de rir...

Isabela não sabia se essa memória retratava algo que realmente ocorrera, ou se isso não passava de um sonho macróbio que tivera. Sequer tinha certeza se as feições do pai, pintadas no quadro da imaginação, representavam corretamente a aparência dele. Ele tornou-se um ser metamorfo em sua mente. Às vezes, imaginava-o com o rosto redondo e com o nariz achatado; outras, o idealizava com o rosto fino e com o nariz empinado. Mas tinha certeza de que ele era loiro, de cabelos cacheados. O fato de Mariana ter feito Isabela e Beatriz desfazerem-se de todas as fotos que tinham dele não a ajudava a recordar.

"É melhor esquecer", pensou, "ele está no passado. Deixe-o lá."

Porém, algumas memórias recusavam-se a ir embora; ficavam dentro da cabeça de Isabela como se ali fosse um teatro onde as mesmas peças eram apresentadas repetidamente. Agora, as cortinas se abriam-se-lhe mais uma vez na mente, e Isabela via o pai tocando violão. Ao redor dele estavam Beatriz, sua mãe e si mesma regalando-se com aquela exibição. Ele cantava "Love me Tender", música que tocou quando casou-se com Mariana. Tinha uma voz bela. Mariana chorava e olhava para ele, com as mãos fechadas em frente ao próprio peito, como se temesse que o coração fosse rasgar-lhe o tórax e cair para fora. Beatriz cantava junto, e Isabela sorria. Viu lágrimas acumularem-se nos próprios olhos.

"Como era boba", reprimiu a imagem antiga de si mesma no teatro de suas memórias, "nessa época, ainda acreditava que ele poderia mudar. Todas nós acreditávamos que ele poderia mudar..."

Quando o pai terminou de tocar e cantar, entregou um buquê de flores para a mãe das meninas; pedido de desculpas por uma das inúmeras vezes que chegara bêbado em casa gritando, brigando, reclamando. Ele ficara tão agressivo nessa noite que, ao ser confrontado por Beatriz, a puxou pelo cabelo e bradou:

"Me respeita! Pago as contas de todo mundo aqui e trabalho o dia todo! Não tenho o direito de beber com meus amigos? Não tenho, porra?!"

Todas elas ficaram aturdidas. Imediatamente, ele percebeu o que fizera. Pediu desculpas e se trancou dentro do quarto de casal, sozinho. Elas dormiram juntas naquela noite. Beatriz verteu lágrimas como Isabela nunca vira antes. Pensava que ela iria reagir quando o pai a puxou pelo cabelo. Mas não... apenas fechou os olhos e se encolheu, amedrontada e indefesa, como se esperasse o impacto de um soco ou de um tapa. No dia seguinte, lá estava ele com um violão e um buquê de rosas em mãos.

"Prometo que não acontecerá de novo, minhas lindas", ele dissera enquanto abraçava as três, "vocês são tudo pra mim. Vou buscar tratamento. Vou... melhorar."

Fez tratamento e, por pouco tempo, melhorou. Mas então, voltou a beber. E bebeu mais, e mais e mais. Apesar de serem humildes, tentaram de tudo: terapia, psicólogos, psiquiatras e até mesmo buscaram ajuda na igreja. Nada funcionou.

As cortinas vermelhas fecharam-se-lhe e abriram-se-lhe novamente na memória...

Estava escuro e o pai de Isabela encontrava-se sozinho no meio da sala de estar, segurando uma garrafa de plástico cheia de um líquido tão transparente quanto água. Ela sabia o que havia ali. O cheiro e o gosto ardente da bebida queimaram-lhe as narinas, a boca e o esôfago. Remexeu-se-lhe o intestino como uma serpente em protesto, e ela quase vomitou. Viu a própria imagem penetrar a escuridão da sala. De pijama e esfregando os olhos, dirigia-se à cozinha para beber água, quando o viu sentado na sofá, bêbado e em silêncio.

"Pai?", ela perguntou, "o senhor está bem?"

"Não, filha", ele respondeu, fechou os olhos. Lágrimas umedeceram-lhe o rosto. Ela aproximou-se dele, e ele a abraçou.

"Me desculpe, meu bem", disse aos prantos, "eu... não consigo", soluçou, "n-não consigo!"

O olhar dele estava tão vermelho que suas escleras pareciam ser feitas de sangue. Círculos negros contornavam-lhe os olhos, e a feição que tinha... derrotado, desesperado, viciado. Um escravo do copo. A expressão em seu rosto era a de alguém que implorava ajuda, mas sabia que já tinha sido derrotado. Queria se salvar, mas já tinha perdido. O que sobrava para ele era ver tudo ao seu redor desmoronar lentamente... de pouco em pouco, dia após dia, copo após copo, trago após trago. Um purgatório de prazeres imediatos e miséria prolongada. Condenado a sentir o efêmero deleite que o álcool o propiciava transformar-se em dor e arrependimento no próximo dia; condenado a ver a própria família distanciado-se cada vez mais; condenado a ver tudo o que construira ao longo dos anos transformar-se em pó. Isabela estava acostumada a vê-lo bêbado. Também já tinha se acostumado a vê-lo recair nos velhos hábitos e depois dizer:

"Dessa vez vou parar de beber, prometo!"

Porém, ela não conseguiu se conter. Afinal, era seu pai. Choraram juntos naquela noite, e ela o ajudou a caminhar até o quarto e deitar-se na cama, onde sua mãe já se encolhia, sozinha, dentre os lençóis.

"Te amo, pai", disse enquanto o cobria.

"Também te amo, meu amor. Vou mudar, prometo."

"Burra! Como pôde acreditar nele?!", reprimiu o próprio reflexo, que abraçava o pai no palco de suas lembranças, "Disse que me amava, mas não mudou. Fugiu!"

As cortinas carmesim se fecharam, mas Isabela sabia que a história não acabava ali. Alguns dias após esse ocorrido, o pai de Isabela fugiu. Levou apenas algumas roupas consigo. Deixou o carro, o celular, a carteira e todo o restante para trás. Foram à delegacia de polícia, registraram um Boletim de Ocorrência, publicaram avisos no jornal da cidade e nas redes sociais, conversaram com amigos, colegas e parentes distantes e até chegaram a pegar empréstimo do banco para contratar um detetive particular. Tudo isso em vão. Isabela nunca mais viu o pai. Com o tempo, temor transformou-se em tristeza, tristeza transformou-se em rancor, rancor trasnformou-se em apatia e então, finalmente, apatia transformou-se em gratidão.

"Não precisamos dele. Na verdade, estamos melhor sem ele", pensou. Depois que ele desaparecera, Isabela passou no vestibular da universidade federal do estado, se mudou e começou a morar sozinha. Em breve, Beatriz faria o mesmo. Sentia pena da mãe, que precisou começar a trabalhar em dobro para bancar as filhas. Mas tudo iria melhorar em breve.

"Tenho que estudar", pensou, "estudar bastante para ser rica e comprar uma casa para minha mãe. Ela terá tudo do bom e do melhor!" 

O celular tremeu-lhe nas mãos. Tinha ignorado as mensagens de Beatriz por alguns minutos novamente.

"Ou... tá aí?", perguntou Bia por mensagem.

"Sim..."

"Só queria te falar mais uma coisa..."

"Fala logo"

"A mãe anda com um comportamento meio estranho."

"Como assim?"

"Ela anda tendo pesadelos com frequência. Um dia desses, ela gritou tão alto que pensei que tinha alguém dentro do quarto dela, a agredindo."

"Deve ser estresse", Isa respondeu, "ela trabalha muito, Bia. Ela ainda vai ao psicólogo?"

"Sim, mas nem mesmo quando o pai sumiu ela ficou desse jeito. Às vezes, ouço ela falando sozinha, sussurrando coisas e olhando para o nada, como se estivesse no celular ou como se alguém estivesse perto dela. Mas quando me aproximo e olho, não há ninguém ali e não tá no celular"

"Nossa", respondeu espantada.

"O pior foi uma vez que acordei no meio da noite e a vi de pé ao lado da minha cama, parada."

"A mãe virou sonâmbula?"

"Não sei... só sei que fiquei assustada. Ela estava me olhando! Quando levantei e me aproximei, os olhos dela me acompanharam... até quando a levei de volta pra a cama e saí do quarto, ela continuou me olhando..."

"Você ainda tem o número do psicólogo dela?"

"Tenho."

"Entre em contato com ele. Diga tudo. Fique de olho, Bia... pode ser coisa séria"

O interfone da kitnet tocou.

"Bia, acho que o Rafael chegou. Vou nessa. Por favor, me mantenha informada. Qualquer coisa que acontecer, é pra me falar, tá bem?"

"Sim, senhora. Vai lá cortar o barato do boy rs"

"Beijão rs"

"Te amo, sua cafona", disse Bia.

"Também te amo, sua chata."

Isabela atendeu ao interfone. Era Rafael.

Ass: Wally

segunda-feira, 20 de abril de 2020

A Gravidez de Isabela: Prólogo

"Abençoe-me, padre, porque pequei", rogou a voz maculada.

"A benção de Deus esteja sobre ti", respondeu quiescente. Através da tela do confessionário, viu a silhueta de uma jovem moça, "há quanto tempo não confessa, filha?", inquiriu serenamente.

"... há um ano, padre".

"E como está a sua fé? Tem se aproximado de Deus?", afagou o livro sagrado em suas mãos.

"Não tenho rezado com frequência ultimamente, m-mas rezei antes de vir aqui", titubeou, "para que tudo desse certo. Pedi perdão a Deus pelos meus pecados", disse aflita.

"Está nervosa? Não se preocupe, tudo vai dar certo. O que gostaria de confessar para mim e para Deus?".

"Eu...", hesitou, "perdi a virgindade. Durante os últimos meses, tenho tido relações sexuais com meu namorado", respondeu.

"Todos nós somos pecadores", confortou o padre, "Deus te ama, mesmo tendo pecado. O que realmente importa é que está aqui, pedindo para que o Pai purifique-lhe a alma e coração. Mas lembre-se que sexo antes do casamento é pecado e não o faça de novo".

O padre sentiu o conflito taciturno da moça.

"Pouco adianta confessar seus pecados se não vai tentar findá-los", alertou amigavelmente.

"Sim, padre, eu sei", engoliu em seco.

"Ele compartilha da nossa fé?"

"... não".

"Já explicou para ele que isso é errado, de acordo com as suas crenças?"

"Já. Ele... tentou ser o mais sensato e compreensível o possível, mas", pausou, "disse que um relacionamento sem momentos íntimos não é saudável. Para falar a verdade, todas as pessoas próximas a mim, a quem pedi conselhos, disseram a mesma coisa".

"Já pensaram em se casar?", sugeriu, "assim, poderá relacionar-se sexualmente sem pecar. Gosta dele, não é?"

"Sim, o amo", respondeu calorosamente, "mas... ele ainda não me propôs", disse desgostosa.

"Isso não é problema. Não precisam ter pressa. Somente estou tentando guiá-la à melhor solução de acordo com a vontade de Deus"

"Os seus conselhos são muito bem-vindos. Pra falar a verdade, são justamente o que preciso agora", a frugalidade na voz dela amolecia o coração do padre.

"Há quanto tempo estão juntos?"

"Seis meses"

"E nunca falaram em casamento?"

"Já. Uma vez. Perguntei se queria se casar algum dia. O rosto dele ficou pálido e me disse que ainda não pensa nisso porque é muito jovem. Depois, nunca mais falamos a respeito. Eu não quero... assustá-lo. Quero casar-me com ele no futuro. Na verdade, o faria agora, se fosse possível"

"Ele ainda não entende, seja por imaturidade ou por medo. Com o tempo, perceberá que o comprometimento é inevitável, assim como várias outras coisas na vida. É seu dever, como sua companheira, ajudá-lo a enxergar, e é dever dele aprender. Com calma, chegarão lá juntos. Mas até então, abstenha-se do sexo", respondeu, "até casarem", sentiu que tais palavras pouco confortaram-na.

"Meus medos residem na jornada até o casamento, e não no casamento em si, padre"

"Entendi. Parece-me ser um boa garota, e tenho certeza de que escolheu um rapaz decente. Ele deve querer casar no futuro. Afinal, um bom arqueiro nunca retira uma flecha da aljava sem a intenção de acertar o alvo. Minha sugestão é: peça que ele tenha paciência e que seja compreensivo. Caso realmente sinta algo especial por você, vai entender... e vai aguardar"

"Muito obrigada, padre", a angústia dela persistiu, apesar de se esforçar para não demonstrá-la.

"Teme perdê-lo?", perguntou. Mas já sabia a resposta.

"Sim...", emitiu um longo e lento suspiro, "peço desculpas", censurou-se, "estou tomando muito do seu tempo. Já me ajudou muito"

"Não se preocupe, filha. Estou aqui para orientá-la. É a vontade de Jesus Cristo vê-la feliz"

"Eu... me sinto muito feliz com ele; como nunca me senti antes. Quero que dê certo, caso contrário... perdi minha castidade em vão"

"Filha", limpou a testa com o lenço que carregava no bolso. Fazia calor ali dentro, especialmente trajando vestes de sacerdote, "como você disse que quer o meu conselho, dá-lo-ei de maneira sincera e direta".

Ela retesou-se por completo, como se fosse receber a mais soturna das notícias.

"Você cometeu um erro. Deveria ter pensado nas consequências que a fornicação traria para você como cristã. Agora, guarde-se para alguém com quem passará o resto dos dias ao lado, alguém com quem tornar-se-á uma só carne através do matrimônio. Se for esse rapaz, ótimo. Caso contrário, pelo menos terá se preservado. Mas lembre-se: fornicar é um pecado tão grave quanto o adultério. Sei que isso soa antiquado, mas é o que a Bíblia diz. E os sábios recorrem à Palavra do Senhor, pois ali está o caminho para a verdadeira liberdade, ao passo que os tolos permitem-se tornar escravos do próprio coração."

"Então devo ignorar o que meu coração diz?", indagou, "Não é dali que vem o amor? O que duas pessoas casadas sentem é, de alguma forma, mais digno que o que essas mesmas pessoas sentiam anteriormente ao matrimônio? Então casaram-se sem amar? Isso não é errado?", ela perguntou humildemente, "Sei que fornicação é pecado, mas não é dito em Provérbios que o amor cobre todos os pecados? Não se diz em Colossenses que o amor é o elo perfeito? Não está escrito em João que quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor? Não se lê em Coríntios que o amor é maior até mesmo do que a própria fé?", inquiriu desorientada, "Peço desculpas pelos questionamentos, padre. Eu os faço por desconhecimento, não por arrogância. Quero descobrir as respostas. É porque... eu o amo. Com todas as minhas forças. E ele me ama. E quando estamos juntos... tornamo-nos uma só carne também. Como isso pode ser comparado ao adultério?"

"Sente-se perdida", pensou.

"Eu entendo seus questionamentos", disse serenamente, "a Bíblia pode ser um verdadeiro labirinto para aventureiros que não levam consigo uma bússola. Quero que preste atenção no que direi agora", limpou a testa novamente. Continuou:

"O sentimento que tem atualmente por esse rapaz pouco importa, assim como o que ele tem por você", ela sobressaltou com o que o padre disse, estarrecida. Mas ele continuou: "É apenas uma paixão, algo meramente físico e efêmero. Com o tempo, irá desvanecer, assim como todas as coisas neste mundo sensível no qual nos encontramos. Sei como se sente, pois também já fui um jovem apaixonado. Porém, o único elo que os conecta não pode ser somente o carnal. Na verdade, esse é o que menos importa, se é que algum valor lhe é predicado. Vocês tem que almejar algo superior. Devem buscar construir uma profunda admiração mútua. Essa seria quase comparável ao amor que Deus sente por nós, aquele descrito no capítulo 13 de Coríntios, que citou agora há pouco. Mas você trilhou pelo labirinto desse livro sem uma bússola e se perdeu, pois o amor lá descrito é algo que transcende o nosso mundo da forma e dos sentidos para muito além. Tal admiração mútua iria inspirá-los a se desenvolver como pessoas e indivíduos. Já ouviu falar que amar é aceitar seu companheiro da forma que ele é?"

"Sim", respondeu embevecida.

"Baboseira. Alguém conformado com o seu ser atual é tolo ou arrogante em demasia. Você e ele devem aprender um com o outro porque veem no companheiro algo que querem incorporar para sí; uma qualidade que ainda não tem, mas podem ter. Vocês tem que melhorar sempre; se transformar juntos, pois somente assim são mais belos e mais nobres. Somente juntos, somente unidos. Da mesma forma que os derradeiros raios do pôr do sol se unem com as nuvens no epílogo da tarde, concebendo uma arte egrégia que adorna o céu, para a contemplação de todos", lembrou-se dela, e as palavras afloraram dentro de si como graciosas dálias durante a primavera, "esse deve ser o objetivo de vocês como casal: buscar o amor verdadeiro, que é quase tão gratificante e puro quanto o de Deus. Não é fácil consegui-lo; é como um tesouro protegido por um dragão, que se esconde nos abismos de uma caverna escura e pavorosa. Terão que batalhar lado a lado para chegar lá e enfrentarão todos os tipos de obstáculos externos e internos, pois é durante a contenda que as nossas fraquezas e defeitos nos assombram impiedosamente. Porém, tudo isso vale a pena, filha", seus olhos pesaram, carregados, "Afinal, nada que é bom e digno se consegue sem esforço, e o amor não é uma excessão. É impossível obter a recompensa que jaz na toca do dragão sem antes enfrentá-lo. E ele erguer-se-á pavorosamente diante de vocês como um titã invencível, fazendo-os sentirem-se ínfimos, frágeis e frívolos; cuspirá mentiras que os queimarão de dentro para fora e causará discórdia e destruição ao bater as asas colossais. Várias pessoas fogem, pois têm medo. Quem não teria? Ao invés de enfrentá-lo, deixam o monstro destruir-lhes as vidas, trazendo caos, dor e pecado, não somente para sí, mas para todos ao redor. Entretanto, se tiverem fé em Deus e fé um no outro, permanecerão instransponíveis e o derrotarão juntos. Sempre juntos. Como se um só fossem. Depois, a recompensa mais hirática pertencerá a vós. Lá, no ventre da caverna, será concebido o fruto sagrado, presente do Criador, pois são merecedores deste, e não porque fornicaram, como criaturas escravas dos próprios desejos. E nada terá sido em vão. Garanto-lhe, filha", ele parou por um momento, sentindo a emoção de cada frase acumular-se-lhe nos olhos. Uma silenciosa lágrima rolou-lhe rosto abaixo. Limpou com o lenço.

"Padre...", disse atônita, "e-eu...", gaguejou, "não sei o que dizer", fungou, "... obrigada. Muito obrigada", fungou novamente.

"Fico feliz em ajudá-la. Agora repita comigo: Senhor Jesus, Cordeiro de Deus", ela repetiu palavra por palavra, frase por frase, "que tiras o pecado do mundo, reconcilia-me com o Pai pela graça do Espírito Santo; purifica-me de todos meus pecados e faz de mim uma mulher nova. Amém".

"Sua penitência", continuou o padre, "é rezar o Pai Nosso e Ave Maria. Ademais, lembre-se de ler a Bíblia diariamente para se aproximar de Deus"

"Irei fazê-lo", respondeu. Depois, agradeceu afetuosamente.

"O Senhor perdoou teus pecados. Ide em paz", abençoou-a e desenhou no ar o sinal da cruz com a mão direita.

Ela saiu do confessionário, e o padre desabou a chorar em silêncio. O mais doloroso dos lamentos. Recompôs-se o mais rápido possível, usando o lenço para limpar as lágrimas persistentes. Rezou o Pai Nosso e Ave Maria como penitência imposta a si mesmo. Então, sentiu-se mais calmo.

Ouviu o som de pesados joelhos dobrando-se sobre a madeira do outro lado do confessionário. Uma grande silhueta apareceu através da tela.

"Ave Maria puríssima", disse enquanto repetia o sinal de cruz com a mão direita. Aguardou a conclusão da frase, mas recebeu apenas o silêncio em resposta.

"Não deve ter costume de fazer isso", pensou. Deu continuidade:

"O que gostaria de confessar para mim e para Deus?"

Sua pergunta pairou solitária no ar.

"Está nervoso? Acalme-se. Não está aqui para ser julgado. Está aqui para se abrir perante Deus"

A madeira do genuflexório estalou. A imagem do indivíduo, transformada em um esboço irregular pelos tênues feixos de luz que atravessavam a tela do confessionário, permaneceu imóvel... o ar pesou ali dentro.

"Tudo bem. Está tudo bem. Tome seu tempo, filho. Estarei aqui, aguardando-o"

Outro rangido foi emitido, desta vez mais agudo e irregular... e desconfortável. E a silhueta dele continuava imóvel.

"Consegue me ouvir?", o padre perguntou. Levantou-se e abriu lentamente a cortina que o impedia de ver além do confessionário. Saiu dali e foi investigar o genuflexório...

Ninguém estava ali.

O padre engoliu em seco. Um silêncio desconfortável pairava no ar. Sentiu-se inquieto.

"Hora de ir para casa descansar."

Dirigiu-se ao vestiário para trocar de roupa. A igreja estava deserta, e cada passo reverberava profundamente por ali. Os sacros desenhos e adornamentos angelicais que santificavam as paredes do local eram a sua única companhia; imaculados anjos com longas e belas asas estavam por todos os lados, voando por entre harmoniosas nuvens e admirando a imagem Dele, lá em cima, soberano e grandioso. Entre túnicas albugíneas, Ele tinha os braços abertos, e uma luz branca emanava-lhe do rosto, sendo impossível vê-lo. Logo abaixo, ficava uma grande cruz marrom. Nela, repousava o filho de Deus, crucificado. Com os olhos fechados e com a coroa de espinhos na cabeça, trajava uma trouxa estafada, que cobria-lhe apenas as partes íntimas. Encontrava-se-lhe uma mulher agaichada aos pés, envergando dalmáticas negras de linho. Lastimando, ela olhava para cima, para seu filho. No corredor que o levava ao vestiário, havia outra pintura da mesma mulher na parede, mas desta vez, ostentava vestes azuis e brancas. Ela segurava um bebê, envolvido por panos, e sorria. Tinha o olhar fixo nele, o pequeno e sagrado fruto de seu ventre. Auréolas contornavam-lhes as cabeças.

No vestiário, retirou a batina. Instantaneamente, um frio arrepiante penetrou-lhe a pele. Esfregou as mãos e os braços, e colocou rapidamente a camisa e a jaqueta que deixara dentro do armário. Viu o sol se pondo, pequeno, turvo e distante, pela pequena janela que ali havia. Estava escurecendo, e o sentimento de desconforto que o padre sentia se intensificou, assim como o frio. Queria sair dali logo.

"Aqui é a casa de Deus, Gabriel. Acalme-se!", disse para si mesmo.

Pegou-lhe os objetos pessoais e a chave do carro, pronto para partir. Fez o máximo para manter a calma, a despeito dos calafrios que retesavam-lhe os pelos do corpo. Saiu do vestiário, com a Bíblia sagrada em mãos...

O breu apoderava-se do corredor, e mal conseguia enxergar. Via apenas o rosto pálido da Mãe na parede, a poucos passos de distância, flutuando na escuridão. Acelerou-se-lhe a respiração, assim como os batimentos do coração, e os passos que dava ecoavam solitários pela igreja. Ligou a lanterna do celular e iluminou o retrato.

Tinha feições tristes e chorava. Trajava túnicas pretas, e em seus braços, por entre os panos, um profundo breu. Gabriel desviou os olhos, mas foi surpreso por uma pintura logo ao lado que anteriormente não estava ali: uma criatura serpentina colossal, com grandes asas que rasgavam o céu vermelho. Tinha vários chifres e cabeças, e uma mandíbula cheia de dentes. Cuspia labaredas em direção à terra, completamente desolada pelo fogo. Ao examinar mais de perto, viu uma mulher engolfada nas chamas da criatura. Desesperada, erguia a mão para outra pessoa, pedindo ajuda. Esta, fugia. Arrepios desceram-lhe pela espinha dorsal; lágrimas acumularam-se-lhe nos olhos. Acelerou os passos.

"Embora. Tenho que ir embora. Mantenha-se calmo", apertou a Bíblia contra o peito.

Ao chegar no transepto, evitou olhar para as paredes. Manteve o foco na porta de saída. Viu o vapor da própria respiração espalhar-se pelo ar gélido à sua frente. Estremeciam-lhe os braços e pernas, mas continuou andando. Então, escutou algo gotejando. Por instinto e reflexo, olhou... o filho Dele estava nu na cruz. Algo escuro escorria-lhe pelo corpo, e a mulher abaixo dele perfurava-lhe as costelas com uma lança. Sangue jorrava do ferimento. Acima da cruz, escuridão profunda. Amedrontado, virou-se rapidamente em direção à saída. Estava quase lá. Quase.

"Ajude-me, padre...", disse o sussurro irregular atrás de si. Recusou-se a olhar. Caminhou mais rápido.

"Gabriel, ajude-me...", sussurrou novamente a voz feminina. Não olhou.

Quase lá. Só mais um pouco. Aproximou-se da porta, e viu no canto do olho esquerdo, fora de foco, o esboço do confessionário. Ao lado, no genuflexório... algo se ajoelhava em meio à escuridão. Fechou os olhos, assutado. Agora, corria para a porta de saída. Ouviu passos pesados e rápidos seguirem-no agressivamente, "TUM, TUM, TUM!"; uma gélida respiração queimou-lhe a nuca, e então... saiu da igreja. Abriu os olhos e disparou em direção ao carro. Tirou a chave do bolso com dificuldades, pois sua mão tremia muito. Abriu a porta, entrou no carro, colocou a Bíblia no banco de passageiros, deu partida e saiu dali.

"Meu Deus! Meu Deus!", disse ofegante. O coração palpitava-lhe tão rápido que pensou que iria rasgar o peito. Pensou em Deus e em Jesus Cristo. Rezou. Acalmou-se. Enquanto dirigia em direção à sua casa, pensou no que acontecera.

"Voltou para me assombrar", o desespero quase se apoderou dele novamente. Respirou fundo, e dirigiu pela escuridão da noite. Eram sete horas, e não havia carros nas ruas ou luzes acesas nos prédios. Passou por várias lojas, mas todas estavam vazias. Abertas, porém vazias. E engolidas pelo breu. Ligou o aquecedor do carro. Apesar de estar de jaqueta, tremia de frio. Seguiu conduzindo o volante, ansioso para chegar à sua residência. Viu um parque, mas ali ninguém se exercitava ou caminhava com cachorros. Apenas as árvores estavam ali, altas e misteriosas, escondidas em meio às sombras tenebrosas. Por um momento, viu algo mover-se sorrateiramente por entre as plantas do parque, mas não sabia se era real ou se era apenas a imaginação pregando-lhe peças.

"Foi um animal... apenas um animal..."

Também não ouviu nada, sequer barulhos distantes de gatos, cachorros ou motos. Ligou o rádio, mas tudo que escutou foi a cacofonia da interferência. Nenhuma estação funcionou. Desligou a mídia e continuou dirigindo, sem ver uma alma viva. Passou por debaixo de um viaduto, e ali as sombras o engoliram por completo. Suaram-lhe as mãos excessivamente no volante...
Finalmente, emergiu do viaduto, mas a densa escuridão persistiu. Decidiu ligar o farol alto... enxergou algo no meio da avenida. Algo distante. O rádio ligou, e uma voz grave e calma recitou:

"E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida do sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a sua cabeça", a interferência ocultou a voz do falante.

Aproximou-se, mas não o suficiente para desvendar o que era aquilo na rua.

"E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz", narrou a grave voz vindo do rádio.

Finalmente, o padre entendeu o que era. Uma mulher. Provavelmente uma moradora de rua.

"E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas", disse mais alto.

Então... chegou perto; perto o suficiente. E viu. Viu aquilo que o assombrou e o assombraria eternamente. Aquilo que o fez e o faria ter os mais demoníacos dos pesadelos. Aquilo que abalou e abalaria novamente a sua fé...

"E houve batalha no céu; Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhavam o dragão e os seus anjos; Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus", recitou mais alto ainda.

Deformada. Torturada. Corcunda. Nua. Grávida. Sem cabelo. Tinha toda a pele do corpo queimada. E gritava. Implorava ajuda. Estendia a mão para Gabriel. Mas ele sabia que ela não estava lá.

"E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele", gritou.

Ass: Wally

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Rafael, o Réu

"Quer casar comigo?", perguntou de joelhos.

Atônita, ela cobriu a boca com as mãos e o fitou por alguns segundos. Por um breve momento, Rafael pensou que ela diria não, mas as palavras que quebraram o silêncio insuportável foram outras:

"Sim", disse ainda perplexa, com os olhos esmeralda avermelhados pelas lágrimas, "sim!", repetiu mais alto e abanou o rosto com a mão esquerda, "é claro que sim!"

Acentuou-se-lhe o palpitar do coração:

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Gentilmente, colocou a aliança no anelar canhoto de Ada. Levantou-se. E eles se abraçaram mais forte do que nunca. Um intenso e rápido pulsar veio de dentro do tórax dela enquanto a envolvia nos braços.

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Sentiu o ombro no qual ela repousava a cabeça umedecido. Quando a encarou novamente, viu lágrimas rolarem-lhe dos olhos. Ela disse:

"Eu... eu te a-"

"Eu também. Eu também."

O ar estava fresco. O vento doce beijava-lhe o rosto e as folhas das árvores à sua cercania farfalhavam airosamente. O sol começava a esconder-se atrás do lago quiescente que repousava logo ao lado. O sereno cheiro da água, ruborizada pelos derradeiros raios de luz, enchiam prazerosamente os pulmões de Rafael. Nunca esteve tão feliz.

"Então era esse o seu plano desde o princípio? E eu bobinha pensei que somente sairíamos para assistir a um filme no cinema e ir jantar", disse rindo. Enxugou as lágrimas do rosto.

"Bom que não percebeu", riu de volta, "teria estragado a surpresa."

"Pensando bem, você estava agindo de modo estranho desde quando me buscou em casa. Abriu a porta do carro para mim e puxou a cadeira para eu sentar no restaurante. Também quis jantar mais cedo porque disse que queria ver o pôr do sol no parque comigo. As pistas estavam por todos os lados, eu que não percebi", riu novamente. Amava a risada dela.

"Como assim, 'estranho'? Está me dizendo que de costume, não sou cavalheiro?", brincou.

"Bem... sempre foi educado e gentil, mas nunca foi um Romeu da vida. Não estou reclamando, só que... pode ser assim sempre, tá?"

"Tudo bem, Julieta", olhou os arredores e perdeu-se na nostalgia que aquele lugar proporcionava. Continuou:

"Lembra-se daqui? Foi aqui que nós começam-... o que foi?"

Estava cabisbaixa e parecia aflita.

"Nada... é só que... e sua mãe?"

"O que tem, minha mãe?"

"Ela já sabe?"

"Sim."

"Não mente?"

"Não. Por que iria mentir? É minha mãe. Ela tem que ficar sabendo uma hora. Vamos nos casar, Ada... não é tipo de coisa que dá pra esconder, sabe? Mesmo se quisesse..."

"O que ela achou?"

"Ficou feliz."

"Seja sincero, por favor."

"Não mentiria pra você. Aliás, você a subestima muito. Ela gosta de você."

"Tá bem... isso porque acabou de falar que não mentiria para mim."

"Não minto. Ela ficou feliz!"

"Para, Rafa."

"Por que ela não ficaria?"

"Bem... depois de...", ela desviou o olhar, "bem, já não gostava muito de mim quando me conheceu porque ela é muito religiosa, já eu..."

"Isso nunca interferiu em nada."

"Tá... não era tão ruim assim antes. Mas depois do incidente... quando ficou sabendo o que eu tinha feito... quando me viu no hospital naquele estado, ela me chamou para igreja dela, mas eu não quis ir... aí ela mudou de vez comigo. Nunca mais foi a mesma. Foi um erro meu, eu sei. Deveria ter ido, não custava nada. Mas eu estava naqueles momentos, sabe? Eu mesma não me reconheço quando fico daquele jeito."

"Isso é coisa da sua cabeça, Ada. Ela sempre gostou muito de você. Ela só queria te ajudar, só isso. Ela é assim mesmo. Tenha paciência. Com o tempo, vocês duas vão se dar muito bem, tenho certeza."

Ela continuava cabisbaixa.

"Olha...", continuou Rafael, "só acredite em mim, tá? Vai dar tudo certo. Já te decepcionei?"

"Não...", ela começou a chorar.

"Meu amor... o que foi?"

"Por quê?", Ada o fitou, com o olhar ruborizado, "Por que eu? É talentoso... poderia estar com o-", parou de falar. Fechou os olhos, que verteram lágrimas silenciosas, e comprimiu os lábios, "Bem... poderia não estar comigo. Eu sou... doente. Tenho algo que vai me assombrar para sempre, Rafael."

"Eu sei. Mas quero estar lá todos os dias para ajudá-la. De agora em diante, somos nós dois contra aquilo. Nunca mais terá de lutar sozinha. Nunca mais."

Ela sorriu e o abraçou.

"Nunca mais. Prometo", pensou.

Dentro dos peitos do casal, intensas batidas se uniam em uníssono:

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Ada enxugou o pranto do rosto mais uma vez.

"Nossa", ela disse, "que dia intenso", sorriu. Continuou: "sim, eu me lembro deste parque. É lindo aqui. Comprou sorvete para gente daquele vendedor ali. O mesmo sorvete que você deixou cair no chão", ela gracejou.

"Fiz um favor pra você. Te poupei de fingir que estava gostando. A careta que você fez quando experimentou...", sorriu, "...só que não tinha coragem de falar. Estávamos só... como é que a garotada fala?... 'ficando'. Hoje em dia, você mesma bateria na minha mão para derrubar o sorvete."

"Você também fez careta quando experimentou. Aí deixou a coisa cair 'sem querer'", fez os gestos de aspas com os dedos. Riram juntos. Olharam-se nos olhos... e seguraram mãos.

"Quer terminar de ver o sol se pôr?", perguntou Rafael.

"Sim", ela respondeu sorrindo de orelha a orelha. Ele apreciou os detalhes daquele sorriso. Inexplicavelmente, o tempo desacelerou. Cada segundo pareceu durar horas; um presente de Deus, como se Ele soubesse que o escritor queria se perder no vasto oceano que era a beleza dela, e também nas suas imperfeições. Admirou o cintilar esverdeado em seu olhar, chamas esmeraldas que escaldavam o coração de Rafael, assim como as tênues rugas que ornamentavam-lhe os arredores dos olhos. Deixou os ternos lábios de Ada lançarem-lhe um feitiço, o levando para um lugar onde não poderia ouvir nada além da canção amena e gentil da voz e das risadas dela; mas também regalou-se com a timidez da pequena cicatriz que adornava-lhe o canto direito do lábio superior. Bebeu do dourado emitido por seus cabelos e contemplou o sol desvanecer atrás dela, coroando-a com as belas chamas rubras da luz do fim do dia; permitiu que a mistura do áureo dos cabelos e do fogo do sol colorisse-lhe o mundo ao redor, como se aquela imagem fosse um quadro mágico, desenhado pelo mais prestímano dos magos; um quadro gracioso e deleitoso, donairoso e apolíneo, perfeito e imperfeito. Mas até mesmo em suas imperfeições, perfeito, assim como ela.

...

Apreciou aquele momento.

...

Se embriagou atemporalmente com aquela obra de arte. Mas então, sentiu as pernas, mãos, braços, rosto, boca e língua pegajosos. Pesaram-lhe as roupas, encharcadas, sobre seu corpo. Um líquido vermelho-escuro cobriu-lhe a visão. Relutantemente, privou a pintura em sua frente de sua admiração e olhou para as mãos.

Sangue.

"Não", olhou para os pés, pernas e braços, desesperado.

Sangue.

"Não! não, não, não!", urrou. Redirecionou a atenção para onde o quadro que pintara estava, mas deparou-se com uma banheira que transbordava mais vermelho ainda. Ao seu redor, as paredes tinham em sua superfície letras carmesim que liam:

"FRACA, INÚTIL."

"NÃO!", bradou, "não me deixe aqui de novo! Não me abandone aqui! Imploro! POR FAVOR!"

Silêncio. Começou a chorar.

"Por favor... não...", suplicou aos soluços, "não me abandone de novo... Tinha me salvado... por favor..."

Silêncio.

"É tudo culpa sua! SUA! Quer me ver sofrer!", as palavras rasgaram-lhe a garganta, apesar dos alertas de dor para não dizê-las que sua mão direita o enviou, "por quê?!", indagou aos prantos, "por que quer me ver sofrer?!"

Seus protestos pairaram sozinhos no banheiro, até serem quebrados por um borbulhar vindo da banheira. Bolhas avermelhadas emergiam do denso sangue que lá jazia, fazendo o líquido escuro transbordar e encharcar mais ainda a porcelana do chão. Um agressivo e alto palpitar de um coração ressoou no banheiro.

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

E então...

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

... ela levantou-se lá de dentro com a faca em mãos. Sua coroa rubro-dourada continuava intacta, mas agora emanava terror, assim como seu olhar verde, agora fosco e inexpressivo. Longas unhas enegrecidas esticavam-se-lhe dos dedos, e Rafael conseguia ver o crânio e maxilar chamuscados, onde as queimaduras consumiram-lhe a carne outrora. As pálpebras de seu olho direito já não existiam; foram devoradas pelo fogo invisível que o escritor presenciara, assim como parte da carne das costelas, dos seios, das pernas e do pescoço. Gemidos guturais estridentes vinham do que sobrava-lhe da traqueia, despida de carne.

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Abalado, o escritor recusava-se a acreditar que aquilo era ela, sua Ada. Ela moveu o pé esquerdo, que pingava carmesim, para fora da banheira. Ao apoiar-se no chão, seu membro estalou, como se todos os ossos dali estivessem quebrados. Ergueu a faca que carregava na mão esquerda, e a lâmina afiada cintilou, assim como o círculo dourado em seu anelar. Os baixos gemidos coaxantes e as longas unhas podres dela o fizeram estremecer. Ele não conseguia se mover, como se um feitiço tivesse-lhe sido lançado sobre o corpo. O pé direito de Ada acompanhou o canhoto, e Rafael viu-lhe a tíbia fraturada rasgar a dantes macia pele da perna ao apoiar-se no porcelanato. Sangue esguichou do ferimento, ela perdeu o equilíbrio e desabou. Ficou imóvel por alguns segundos, mas então...

Tutuuuuuuuuuuum!

Tutuuuuuuuuuuum!

Voltou a gemer esganiçadamente e começou a se arrastar, ainda brandindo a faca. Suas alongadas garras arranharam o chão, emitindo um som demasiado desconfortável. Algumas delas quebraram e desprenderam-se-lhe dos dedos, levando consigo pedaços de carne rubro-negras. Estava se aproximando...

Tutuuuuuuuuuuum!

Ainda em choque, Rafael deu um passo para trás, mas escorregou no chão, sujo de sangue, e caiu. Suas costas encontraram a parede atrás de si. Sentado, observava sua Ada aproximar-se lentamente.

Tutuuuuuuuuuuum!

"Tudo bem, meu amor", pensou, "eu mereço... está assim por minha culpa. Mereço morrer. Leve-me. Queimaremos juntos no inferno. "

Tutuuuuuuuuuuum!

Finalmente, a mão dela alcançou-lhe a perna, apertando-a com força.

"Perdoe-me, pequena Eva. Falhei com você, assim como falhei com sua mãe e sua avó. Perdão", disse para si mesmo.

Ela pareceu ter ouvido-lhe os pensamentos. Crocitou um torturado e insalubre grito irregular pelo buraco da garganta. Aquele som fúnebre arrepiou todos os pelos do corpo do escritor.

"O som que anuncia minha morte; uma canção de sofrimento, ódio e ressentimento."

Tutuuuuuuuuuuum!

Ada rastejou-se sobre o corpo de Rafael. O olho esquerdo dela, esbugalhado; o direito, despido das próprias pálpebras. Ele sentiu a dor, raiva e tristeza que cintilavam-lhe no olhar; viu os ossos expostos da mandíbula dela comprimirem-se. Ela ergueu o braço destro, agarrou firme a mão esquerda do escritor e empunhou alto a faca.

"É agora. Faça-o!", os derradeiros pensamentos ecoaram-lhe na mente, "não desviarei meu olhar. Quero morrer olhando-a nos olhos!"

Manejou a arma em direção à mão canhota dele, e então...

Tutuuuuuuuuuuum!

... repousou o objeto nos dedos dele. Ela encarou o punho destro de Rafael e coaxou um longo e lento lamento através do orifício em sua traqueia; lágrimas rolaram-lhe pelo rosto deformado. Ele fitou a faca deitada na própria palma, sem agarrá-la com os dedos, ainda perplexo com tudo aquilo. Lastimando, ela fechou lentamente o olho que ainda era provido de pálpebras e repousou a cabeça no colo dele. A aliança no anelar dela brilhava, e ela arquejava. O pulsar desvanecia:

Tuuuuuuuum...

"A-ada?", chamou-a, ainda espantado. Umedeceu-lhe o colo. Ela exalava fracas arfadas...

"E-eu...", gaguejou, sem saber o que falar. Respirou fundo. Era ela, sua Ada. Continuou:

"E-eu estou aqui. Não vou a lugar algum. Não vou te deixar."

Lembrou-se da promessa que fizera a ela há anos: "não lutará sozinha."

...

Lembrou-se do que dissera depois; anos depois. Depois de se casarem, depois de terem uma linda filha, depois das inúmeras horas que passara escrevendo, depois das brigas, depois da bebida dele, depois dos remédios dela, depois da primeira e da segunda tentativa de suicídio de Ada, depois de mais brigas, depois da cruz quebrada, depois da Bíblia empoeirada, depois... de pedir um divórcio. Também lembrou-se da feição soturna de Ada ao ouvir:

"Nós tentamos por muito tempo, mas isso foi longe demais. Está afetando a vida de nossa filha... e também minha carreira. Pode contar com a minha ajuda sempre, mas acredito que será melhor se nós nos separarmos".

...doeu-lhe o punho direito.

"Me desculpe", disse.

Tuuuuuuum...

"É linda mesmo assim", pensou, "ainda é linda, minha Ada", acariciou-lhe os cabelos rubro-dourados. Fatigado, o palpitar se extinguia:

Tuuuuuum...

"Não se vá, por favor..."

Imaginou que estavam de volta àquele lugar mágico, ao lado do plácido lago, somente os dois. O vento suave afagava-lhe o rosto; raios de luz do pôr do sol adornavam o local... e ela também.

"Ela está aqui comigo! Posso vê-la!"

tuuuuum...

Estava de joelhos novamente, e Ada sorria. O sorriso mais belo que qualquer pessoa poderia desejar ver. Ela olhava a aliança, e lágrimas escorriam-lhe rosto abaixo. Ele segurava-lhe a mão, mas desta vez, iria segurar-lhe a mão para sempre. E não iria largá-la. Não ali. Nunca mais.

"Não vou te abandonar. Não desta vez, prometo!"

Tuuuum...

Mas eles não estavam lá, e ela não sorria. O sol não a coroava, mas sim o sangue. Também não havia um sereno lago ao seu redor, mas sim um inferno carmesim... e ele não poderia mais segurar a mão dela para sempre. Ela não moveu-se-lhe mais no colo...

"Não me deixe... conseguia senti-la! Estava aqui, na minha frente! Por favor..."

Tuuum...

Deitou-se-lhe ao lado da cônjuge, sua eterna companheira. Quis morrer bem ali, ao lado dela.

Tuum..

Remorso... finalmente se apoderou de Rafael. O pesado pranto rasgou-lhe o rosto. Jogado sobre o chão, chorou por muito tempo...

Tum.

O palpitar cessou.

Ass: Wally

sábado, 31 de agosto de 2019

Ada, a Cônjuge

"Finalmente parou de gritar?", perguntou calmamente. O homem estranho o encarava com os olhos soturnos cor de ônix, fixos em Rafael. A luz da cozinha estava acesa, iluminando o local com um amarelo enjoativo. As entranhas remexeram-lhe o jantar que comera tranquilamente horas atrás, quando ainda não imaginava que se encontraria na situação de agora. Virou o rosto e vomitou.

"Por favor, deixe-me ir...", suplicou com a voz rouca e esganiçada, após limpar os restos de comida dos lábios. Tentou mover os braços e pernas, sem sucesso; suas mãos pareciam estar amarradas à cadeira com cordas invisíveis, e seus pés, petrificados.

"Já lhe disse que ficará aqui até ser julgado. Não adianta chorar ou gritar", respondeu em um tom austero.

Rafael sentia-se exausto. Só queria dormir; deitar-se na cama e esquecer de tudo o que acontecera; deixar as lúgubres memórias deste encontro desvanecerem-se ao ser acolhido pelo sono; acordar no dia seguinte e perceber que tudo não passou de um terrível pesadelo.

"Tá... ", sussurrou em um tom estridente, "tá bem", disse ofegante, "a-acabe logo com isso... por favor... só termine logo. Faça o que deve fazer...", terminou arquejando.

Samuel bebericou o chá da pequena xícara que segurava com os dedos, longos e finos, com o olhar ainda cravado no escritor. Os círculos negros ao redor dos olhos encovados do estranho homem aparentaram ficar ainda mais escuros; ele estudava os olhos de Rafael, como se estes fossem a porta de entrada pela qual o juiz acessava os pensamentos, a alma, os desejos e o passado do escritor... e também seus pecados. Após repousar a xícara sobre o píres, falou:

"Antes disso, quero que busque algo para mim."

"O-o quê?", quis saber na esperança de que seja lá o que quisesse fosse a saída desta situação.

"A faca", respondeu em um tom sereno, porém sutilmente gutural.

Enrijeceram-lhe os pelos do corpo de Rafael; acelerou-se-lhe o coração dentro do peito.

"Meu Deus todo poderoso, proteja-me", pensou, "faça disso tudo um sonho, por favor! Faça com que ele desapareça e que tudo volte ao normal!"

Porém, Samuel não desapareceu. Continuava lá, sentado à sua frente, austero e inabalado, apesar das preces. Rafael sentiu-se abandonado. Respirou lentamente e tentou apanhar as palavras com mais calma:

"P-pra que quer uma faca?"

"Rafael, é juiz?", interrogou solenemente.

"N-não..."

"Então não faça perguntas. Juízes fazem perguntas. Interrogados às respondem. Agora, providencie-me a faca, por favor", a voz dele era tranquila, mas incisiva, e seus olhos, negros, fixos em Rafael, cortavam-lhe a alma. Um breve silêncio apoderou-se da cozinha. Tentou esconder o medo e a ansiedade que atormentavam-lhe o coração, mas os dedos trêmulos das mãos o entregavam. Respirou profundo novamente, então disse:

"B-Bem", gaguejou, "h-há várias facas atrás de você... dentro das gavetas, debaixo da pia", conseguiu concluir a frase, malgrado o peso imensurável das palavras. Sentia o sangue correr-lhe mais rápido do que nunca dentro do corpo. O formigamento volvou a mordiscar-lhe o punho direito.

"Não quero uma faca, Rafael. Quero a faca.", suas palavras pairaram no ar.

...

"Q-qual faca...?", quebrou o silêncio.

"Não se faça de burro", disse com calma, "não gosto de pessoas que se fazem de burras. Sabe muito bem de qual faca estou falando."

O fúnebre passado apoderou-lhe dos pensamentos...

Sangue. Sangue transbordou-lhe nas memórias. Agora, estas o trouxeram de volta ao banheiro de seu quarto de casal: grande, luxuoso e, naquele momento, vermelho. Na banheira, um corpo. Cabelos dourados flutuavam no líquido carmesim dali. Ao lado da banheira e das mãos dela, delicadas e pálidas, uma faca. A faca.

"Busque-a. Traga-a para mim", disse Samuel.

"M-mas a faca não está comigo. Não minto. A polícia a levou no dia em que-", não conseguiu terminar.

"Está sim. Lá em cima, no mesmo lugar do ocorrido", ele redarguiu.

"Como?!", pensou, aterrorizado. Os dedos frios do medo tocaram-lhe as costelas e apertaram-lhe o estômago, congelando a barriga de Rafael. Sua mão direita voltou a pulsar e doer.

"Está esperando o quê?", inquiriu Samuel.

...

Os olhos do juiz penetraram a alma do escritor, estupefato.

"N-não é poss-"

"Minha paciência tem limite, Rafael", interrompeu-o.

...

"T-tudo bem. Já que diz que ela e-está lá em cima, a trarei aqui...", balbuciou.

Sentiu as pernas livres, mas inquietas. Começou a mover os pés, trêmulos, e levantou-se da cadeira. Os olhos de Samuel acompanharam-no. As pernas do escritor eram tão firmes quanto folhas soltas em uma tempestade. Receou despencar sobre o chão a qualquer momento. Até mesmo de pé, erguendo-se diante daquele estranho homem, Rafael sentia-se inferior. Queria andar mais; continuar seu caminho até a faca para acabar logo com isso, mas não conseguiu. Fitou a escuridão macabra que dominava as escadas, ao lado da cozinha, que o levariam até o segundo andar da casa, onde supostamente encontraria o objeto.

"A faca", pensou, "não pode ser... não pode estar aqui..."

Samuel, imóvel e em silêncio, continuou encarando Rafael. Apenas os olhos daquele moviam-se, acompanhando este para onde quer que fosse. Sequer via o tórax do juiz mover-se para respirar, nem escutava o ar entrando-lhe e saindo-lhe das narinas. O corpo daquele homem parecia ser um casulo; lar de algo muito... maior. Finalmente, conseguiu arrastar as pernas lentamente até as escadas, próximas à cozinha. Cada um de seus pés fazia reverberar um alto baque no ambiente ao encontrar-se com o chão.

"Poderei encontrar-me com ela lá em cima. Ela tem celular! Chamaremos a polícia! Faremos qualquer coisa", pensou, "gritaremos, rezaremos, seja lá o que for! Pelo menos não estarei sozinho com-"

Parou em frente às escadas; as trevas apoderavam-se de cada degrau, fazendo do segundo andar um mar de escuridão. Virou a cabeça e viu que os olhos de Samuel o aguardavam, apesar da cabeça deste manter-se imóvel. Mexera apenas os olhos, mais negros e opacos do que as noites mais sombrias, desde quando se acomodara na cadeira da cozinha. O breu que aguardava Rafael degraus acima era bastante semelhante ao contido nas pupilas de Samuel. Estremeceu. Esforçou-se para que o pé direito se movesse de encontro ao primeiro degrau diante de si. A madeira protestou com um rangido alto e desagradável. Quis dar outra olhadela para trás, mas desta vez, conteve-se. Seu pé esquerdo também se moveu, e depois foi liderado novamente pelo direito, e o movimento se repetiu, assim como o choramingar da madeira debaixo de si, até o escritor ser engolido pelas trevas.

Não enxergava nada ali. O frio rasgou-lhe a pele e os pulmões. A não ser pelo ranger dos próprios passos sobre os degraus, não ouvia mais nada. Sua respiração consistia de rápidas e ansiosas baforadas. Enfim, percebeu que havia chegado ao segundo andar. Parou e virou em direção ao corredor à esquerda, ainda cego pela escuridão. Parecia estar em um local totalmente diferente de sua casa, mas sabia que o quarto estava a poucos passos de distância.

"Cinco. Cinco passos é o que preciso para chegar lá", pensou.

Novamente, o pé direito liderou a caminhada, e a mão destra apalpava a parede ao lado, em busca da porta do quarto. Sentiu o interruptor de luz sob os dedos, mas este mostrou-se inútil ao ser apertado. A escuridão persistiu, assim como os protestos da madeira debaixo de seus pés. Deu outro passo, e mais um, e a madeira do chão continuou chorando em desdém com todo aquele movimento. Antes que pudesse dar o quarto passo, um clarão adentrou repentinamente o ambiente. Através da janela no fim do corredor, viu linhas brancas e finas, como dedos deformados e contorcidos, rasgarem o céu negro lá fora, das nuvens até o chão. O breve lampejo que adentrou o local revelou os quadros pendurados nas paredes de ambos os lados, assim como a porta de seu quarto, aberta e bastante próxima. Então, as trevas surgiram novamente, acompanhadas de um estrondoso rugido que reverberou fortemente pela noite:

"truuuuuuuuum."

As paredes tremeram, assim como o chão, e até mesmo o corpo de Rafael. Retesaram-se-lhe os cabelos da nuca, e calafrios escalaram-lhe a pele do corpo. O susto o fez parar. Sentia-se observado por todos os lados, como se o breu fosse uma enorme pupila, acompanhando cada movimento que fizesse, por mais sutil e insignificante que fosse. Permaneceu imóvel... ouviu a madeira do chão que tinha deixado para trás ranger sozinha, como se tivesse sido pressionada por algo escondido nas trevas. Ofegante, voltou a andar.

"Quatro, cinco", contou em voz baixa. Seguiu de olhos fechados, com a mão direita ainda apalpando a parede. Finalmente, sentiu a madeira da porta em seus dedos e abriu os olhos novamente, apesar de não conseguir enxergar quase nada. Estava semiaberta, e emitiu suaves estalos quando a empurrou gentilmente. Graças à tênue luz emitida pelos dígitos do despertador de cabeceira ao lado da cama, conseguia ver o vulto dela. Estava lá, inerte, lançada sobre o colchão. Não a ouvia respirar. Tentou ligar o interruptor de luz do cômodo, mas assim como o do corredor, mostrou-se inútil. Do outro lado da cama, ficava o banheiro, onde Samuel disse que iria encontrar a faca.

"Não pode ser", disse para si mesmo, "mesmo que esteja lá, o que quer fazer com a faca?"

Uma voz no fundo da sua mente dizia que tudo era possível depois do que acontecera nesta noite. Uma parte de si jamais desejava ver qualquer objeto que o fizesse lembrar do que ocorreu naquele banheiro, muito menos a faca. Até mesmo reformara o cômodo após a tragédia. Retirou a banheira que lá havia, assim como o revestimento de porcelanato, polido e branco, do local, e o substituiu por elegantes mármore e granito. O simples pensamento de encontrar a lâmina rubra sobre o chão de porcelana revirava-lhe as entranhas. Não sabia como proceder.

"Ele perceberá se fizer movimentos bruscos', pensou, "devo me aproximar dela sem fazer barulho e pedir para que ligue para a polícia. Tudo em silêncio. Ele consegue me ver, tenho certeza!"

Olhou para o relógio de ouro em seu pulso direito e ficou perplexo com o horário que o dispositivo exibia. A princípio, pensou estar estragado, mas o despertador em seu quarto confirmava o contrário.

"1:21", declaravam atemporalmente os aparelhos.

"Já deveriam ser quase 4 da manhã", pensou, "que diabos está acontecendo aqui, meu Deus?!"

Penetrou o quarto com cautela. Seus passos sorrateiros o levaram até a mulher debruçada sobre a cama.

"Ei!", sussurou, "acorde!", balançando sutilmente os ombros dela, "acorde!", tentou novamente.

Ela exalou um baixo e longo suspiro. Agora, tinha a impressão de que os olhos dela estavam abertos. Pareciam estar lançados sobre Rafael. Não tinha certeza, pois a luz emitida pelo despertador era demasiada tênue.

"Está acordada?", quis saber em voz baixa.

A porta atrás de si fechou rispidamente, com um alto e seco ruído. Os móveis do quarto tremeram, assim como Rafael, que estudou o cômodo, amedrontado. Quando voltou-lhe a atenção para a cama e para a mulher que ali repousava, teve a impressão de que os olhos dela estavam esbugalhados, encarando-o. Não sabia se a mente pregava-lhe uma peça, pois o breu toldava-lhe a visão. O suspiro agudo que ela emitia prolongou-se e acentou-se.

"Ei! Está acordada?", sussurrou novamente.

A madeira do chão próxima à porta estalou lentamente. Rafael estremeceu. Observou os seus arredores, alerta. Então, disse em voz alta:

"T-tudo bem! E-estou indo para o banheiro buscar a faca!"

As palavras pairaram solitárias no ar e desvaneceram lentamente, enquanto o pesado silêncio apoderava-se novamente do lugar. Por alguns segundos, pôde ouvir apenas o farfalhar das folhas das árvores, fora da casa, e o sussuro do vento querendo entrar pelas janelas do quarto.

Petrificou-se o corpo de Rafael...

Pesados soluços, acompanhados de um choro baixo e esganiçado deixaram os cabelos de Rafael em pé. Inicialmente, recusou-se a olhar para trás. Fechou os olhos e assim ficou por alguns segundos, enquanto seu corpo, trêmulo, arrepiava-se da cabeça aos pés. Os gemidos taciturnos que vinham atrás dele aparentavam ser emitidos por uma mulher. Decidiu olhar...

De pé, ao lado da cama, erguia-se outra silhueta, esguia e com longos cabelos despenteados. Acariciava gentilmente, com dedos finos e contorcidos, a cabeça da mulher deitada; moviam-se irregularmente por entre as mechas da conhecida de Rafael, estalando a cada movimento que faziam. Longas unhas, encobertas pela escuridão, despontavam-lhe dos dedos. Algo jorrava-lhe dos pulsos. O lamento fúnebre e os estalos emitidos pelos movimentos torturados daquele ser congelaram o corpo de Rafael. Urina espalhou-se-lhe pelas virilhas.

"P-pai nosso", começou em voz baixa, "q-que estais n-no... n-n-no", e parou, incapaz de terminar. A mão destra voltou-lhe a pulsar como um coração, fazendo-o encolher de dor. A criatura notou Rafael. O lamento lúgubre e os soluços da silhueta macabra cessaram. Parou de acariciar o cabelo da mulher debruçada sobre a cama. Os membros daquela coisa emitiram sons desconfortáveis, como se todos os ossos de seu corpo estivessem deslocados; os dedos, deformados, esticavam-se-lhes sob o cobertor da escuridão, e as longas unhas, garras que rasgavam toda a coragem que restava no escritor, esticavam-se ameaçadoramente. O ser virou o pescoço lentamente, redirecionando sua atenção para Rafael. A cacofonia óssea do movimento o fez urinar nas calças novamente. O pegajoso líquido ainda jorrava dos pulsos da silhueta sombria, espalhando-se pelo chão. O ser não se movia, apenas encarava-o...

"Mexa-se! Corra!", pensou em vão. O próprio corpo recusava-se a obedecer. Ardia-lhe o punho direito. E a criatura continuava lá, imóvel, olhando-o...

"Meu Deus!", pensou, "proteja-me! Sei que pequei; cometi erros... mas ainda sou fiel. Ajude-me!"

Por fim, libertaram-se-lhe os membros das amarras invisíveis que os imobilizavam e suas pernas levaram-no o mais rápido possível para dentro do banheiro. Entrou e bateu a porta atrás de si. Ofegante, agarrou a maçaneta com toda a força que tinha, temendo que a criatura fosse segui-lo, mas não ouviu nenhum movimento vindo do outro lado. A maçaneta permaneceu inerte em sua mão, mas ainda recusava-se a soltá-la.

"Que diabos era aquilo?!", pensou, "que diabos, meu Deus?!"

Tentou acalmar-se. Depois de alguns minutos, respirou um pouco aliviado.

"Tenho que pegar logo essa faca. Pelo menos terei alguma coisa para me defender", disse consigo mesmo.

As trevas cegavam-no. Tentou ligar o interruptor de luz, mas o resultado era exatamente aquele que esperava. O piso era frio e liso sob seus pés, e o seco gotejo de algo contra o chão adentrou-lhe os ouvidos. Subitamente, as lampadas do local acenderam, e o mundo de Rafael desabou...

Lá estava ela, nua, dentro da banheira. Os longos cabelos dourados dela ensolaravam o ambiente, e sua amena pele clara reluzia no porcelanato branco das paredes e do chão; um gracioso sorriso adornava-lhe os lábios, e seu encantador olhar esmeralda caía sobre Rafael.

"Meu amor", ela estendeu a mão, "sente-se ao meu lado. Senti tanta falta de você", a voz dela era tão suave aos ouvidos do escritor quanto a garoa noturna mais aconchegante, que leva sono e sossego àquela mente ansiosa, incapaz de dormir. Atônito, disse:

"Ada?! C-com... n-não pode... não pode ser..."

"Meu amor... Rafa, sou eu. Venha", ainda estendia-lhe a mão, "temos muito a conversar. Quero saber como você está; como nossa princesa está. Venha..."

"Amor?", as lágrimas subiram-lhe aos olhos, "é realmente você? N-não é possível..."

"É claro que sim, meu bem. Sou eu!"

"E-eu... ando vendo tantas... coisas", hesitou, "n-não sei mais no que acreditar... tanto aconteceu nesta noite...", silenciosas lágrimas escorreram-lhe rosto abaixo.

"Eu sei, amor. Quero ajudá-lo... ajudá-lo a sair deste pesadelo. Confie em mim. Quero seu bem; sempre quis. Mas antes, quero conversar."

"Tu-tudo bem", enxugou os olhos e agachou-se ao lado dela. Ela segurou as mãos de Rafael.

"É-é ela!", pensou. Abraçou-a com força.

Não havia água na banheira, nem aquele outro líquido... vermelho. Sentiu-se aliviado. Porém, havia outra coisa lá dentro: uma faca. Repousava junto aos delicados pés de Ada. Rafael estremeceu.

"Por quê? Por que fez aquilo?"

"Estava doente, Rafael... precisava de ajuda. Não consegui me recuperar. Era insuportável... viver."

"E-eu tentei te ajudar", disse inconformado, "teria continuado tentando até não ter mais forças. Por q-", parou de falar. Lágrimas umedeceram-lhe os olhos, "nossa garotinha sente tanto a sua falta", terminou.

"Nossa garotinha...", avermelharam-se os olhos dela, "nossa princesa... nossa pequena Eva. Como sinto falta dela...", ela lastimou. Ressoaram-se-lhe o pranto pelo banheiro. Ele a abraçou novamente. Choraram juntos.

"Eu te amo", ele disse com o peito pesado, "perdoe-me, Ada. Falhei... Perdão pelo que disse. Pelo que fiz."

"Tudo bem, meu amor", ela disse. As lágrimas ainda rolavam-lhe rosto abaixo, "ainda pode me ajudar."

"Posso?", perguntou esperançoso.

"Sim", esticou a mão e pegou a faca que repousava-lhe entre os pés, "corte-a", olhou para a mão direita de Rafael, "corte-a, meu amor. Livre-se. Enxergue."

Rafael recuou.

"A-Ada...", disse enleado, "c-como pediria isso de mim? Como isso iria ajudá-la?"

"Meu amor, você não entende", ela coçou a pele dos braços, "arde tanto", avermelharam-se-lhe os olhos novamente, "sinto-me tão sozinha...", brilhava-lhe o olhar, rubi, sob a luz, "não há outra saída... Deve cortá-la!", exclamou.

"Meu bem, minha Ada...", ele disse acariciando a face dela, "não há necessidade disso! Sempre estarei aqui. Pode... pode me visitar sempre! Mas... mas o que está sugerindo é o pior dos pecados."

"Quem é você para falar sobre pecar?!", protestou rispidamente.

O escritor ficou sem resposta por alguns segundos...

"Sim", lembrou-se das palavras que disse a ela, e o coração tornou-se-lhe excessivamente pesado dentro do peito, "perdoe-me. Errei...", a lástima apoderou-se novamente de seus olhos, "não há um dia sequer em que não me arrependo do que disse e do que fiz. É uma culpa que carregarei eternamente. Porém, não posso desistir. Não posso abandonar minha mãe, muito menos nossa filha. Amo-as."

"Mentiroso", ela bradou, "sempre foi e sempre será um mentiroso. Mente para a própria mãe e filha, assim como mentiu para mim! Mente para Ele! PEQUEI POR CULPA SUA!"

"Ada...", acelerou-se-lhe o coração.

"Diz temer o julgamento de Deus, mas repete os mesmos pecados do passado! Recusa-se a enxergar! Diz amar sua mãe, mas a abandona pelos mesmos motivos que me abandonou, enquanto ela sofre da mesma doença que eu tive! E nossa filha?! O amor que tem pelo álcool mostrou-se mais poderoso do que o que tem por ela! Diga-me, sua cobra mentirosa, por que há tantas garrafas vazias na sua casa ao invés de brinquedos de criança?! Por que há uma pessoa qualquer deitada na sua cama ao invés de uma filha pedindo para que leia uma historinha antes de dormir?! Por que dedica-se tanto aos seus malditos livros ao invés de ensiná-la a ler e a escrever?! HIPÓCRITA! MENTIROSO!", a cólera dela ecoou pelo banheiro.

Rafael estava desnorteado, sem saber o que responder. Cólera cintilava nos olhos dela, e ela agarrava a faca com força. A luz das lâmpadas reluziam na lâmina da arma. Ele via ódio em seu rosto. Respirou fundo e disse:

"Você está certa. Sou um mentiroso e um hipócrita. Errei e continuo errando. Peço desculpas, Ada", olhou-a nos olhos, cheios de rancor, "Você não merece isso. Nem minha mãe ou nossa filha. Eu lhe dou minha palavra que irei mudar. Eu... eu ainda posso mudar. Vou melhorar", repousou a mão canhota sobre a dela, que erguia a faca. Ela voltou a prantear:

"Por favor...", soluçava, "n-não me deixe sozinha. Lá é horrível. Por favor, Rafa...  pegue a faca... n-não quero voltar para lá."

"E-eu", não sabia o que falar, "meu bem... eu rezarei por você todos os dias. Prometo. Ele irá protegê-la. Ele ainda te ama, assim como eu."

"Por favor", suplicou lagrimejando, "Amor da minha vida, eu imploro! Ele... ele vai me levar de volta para lá!"

"Vamos orar, meu amor! Oremos juntos!"

"Não", urrou, "não vai funcionar! Pege a faca e corte-a!"

"Ore comigo meu amor. Não perca a fé! Pai nosso.."

A pele dela ruborizou-se. Ela se coçou agressivamente. Um alto chiado encheu o banheiro; um vapor denso e malcheiroso subiu-lhe do corpo. Ela gritou.

"Rafael!", guinchou, "p-pelo amor de Deus! Proteja-me! N-não quero voltar para lá! POR FAVOR!", esbravejava de dor e contorcia o pescoço, "ARDE! ELE VAI ME LEVAR DE VOLTA! VOU ARDER PARA SEMPRE!", bolhas rosadas formaram-se-lhe por todo o corpo. Rafael estava em choque, mas continuou:

"Que estais nos Céus!", disse em voz alta, enquanto o vapor que saía do corpo de sua ex-esposa enchia o local, "santificado seja o Vosso Nome", continuou enquanto ela ladrava, "venha a nós o vosso Reino", as bolhas no corpo de Ada começaram a estourar, desprendendo pedaços negros de carne; o chiado acentuou-se, "SEJA FEITA A VOSSA VONTADE", tentou rezar mais alto ainda, inutilmente, "ASSIM NA TERRA COMO NO... COMO NO... c-como no...", viu partes do crânio debaixo da derme enegrecida da testa e do olho esquerdo de Ada; apareciam-lhe o maxilar e os dentes da bochecha direita, despidos de carne e chamuscados pelo vapor impiedoso; costelas, úmero, fêmur e tíbias estavam expostos, carbonizados. Gritos de dor reverberavam por ali. Em meio àquela sauna putrefata, o escritor estava petrificado, com os olhos arregalados, boquiaberto e com lágrimas de espanto descendo-lhe pelo rosto. Não conseguiu terminar de proferir as palavras. Sentia a mão direita pulsar, mas isso pouco importava agora.

"RAFAEL", ainda gritava Ada, "NÃO ME ABANDONE DE NOVO! A FACA! PEGUE A FACA!"

Mas ele continuou paralisado, incrédulo. Desesperada e urrando, com a arma em mãos, ela cortou os próprios pulsos. A afiada lâmina emitiu um estridente silvo ao rasgar a pele. Sangue jorrou para todos os lados, sujando o rosto de Rafael, suas roupas, as paredes e o teto. O carmesim encheu rapidamente a banheira, e ela, aos poucos, parou de gritar. Lentamente, o esmeralda nos olhos dela desvaneceu-se; agora estavam foscos, mortos; e a coroa dourada que antes carregava na cabeça tornou-se rubra ao flutuar no próprio sangue.

O vermelho apoderou-se daquele ambiente novamente... mas desta vez, havia mais; muito mais. Pingava do teto, escorria pelas paredes e pelo rosto do escritor.

"Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue. Mais sangue", pensou, "falhei novamente. Novamente. Novamente. Novamente. Novamente. Novamente. Novamente. Novamente."

Rafael não piscava; ainda estava boquiaberto e com os olhos esbugalhados. O rubro gosto azedo da culpa enjoava-lhe a língua; deixou o carmesim de sua ex-companheira enfeitar-lhe as pupilas e observou debilmente o banheiro, escarlate e insalubre. Como se tivesse vontade própria, o sangue nas paredes foi tomando lentamente o formato de letras enquanto escorria até o chão:

"FRACA, INÚTIL", lia-se por todos os lados.

Ass: Wally